PJE Nº 0800264-12.2020.4.05.8405 EMENTA PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL DE PESSOA, NO DEPARTAMENTO DE TRÂNSITO, REGISTRADA COMO PROPRIETÁRIA DE VEÍCULO APREENDIDO EM FLAGRANTE DE OUTRO INDIVÍDUO NO TRANSPORTE DE CIGARROS CONTRABANDEADOS DE PROCEDÊNCIA CHINESA (
ARTIGO 334-A DO
CÓDIGO PENAL). INEXISTÊNCIA DE PROVAS DA SUPOSTA PRÉVIA ALIENAÇÃO DO VEÍCULO, PERSISTÊNCIA DO SEU INTERESSE PARA A PERSECUÇÃO CRIMINAL E INSUBSISTÊNCIA DA TESE DE QUE, SEM O REFERIDO REGISTRO, NÃO TERIA SE OPERADO HIPOTÉTICA TRADIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE PRONTA DEVOLUÇÃO DO CONTROVERTIDO BEM. DESPROVIMENTO DO RECURSO. 1. Cuida-se de apelação criminal, intentada pelo advogado
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...em favor de (...), voltada ao combate de decisão, proferida no juízo da 15ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, em que foi rejeitado pleito de devolução de veículo automotor (caminhão Volkswagen de modelo 24.250, placa DKI-3H90 e numeração 00253134196 no Registro Nacional de Veículos Automotores - RENAVAM), apreendido em 04.04.2020, quando da prisão em flagrante de (...) pelo transporte de cigarros de origem chinesa de internacionalização proibida no Brasil. 2. A representação processual do recorrente alegou, em síntese, que: a) o apelante, em momento não especificado nos presentes autos, haveria, por soma não mencionada neste caderno processual, alienado o citado caminhão a pessoa não referida nominalmente neste recurso; b) após a referida venda, o recorrente não teria mais tido notícias da inominada pessoa mencionada, sendo, ulteriormente, surpreendido com a apreensão do controvertido bem e com a descoberta da existência de vultosas dívidas em seu próprio nome junto ao Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN) no Piauí (débitos relativos a impostos, taxas e multas diversas), já que não realizada, pelo suposto inominado comprador, a anotação da transferência do controvertido bem perante o citado órgão de trânsito; c) não efetivada, no DETRAN do Estado do Piauí (DETRAN/PI), a indispensável anotação da transferência da propriedade do caminhão em debate, não teria, nos termos do Código Civil (artigos 492 e 1.226, especialmente) e do Código de Trânsito Brasileiro - CTB (artigos 123 e 257, em particular), ocorrido a tradição do bem e o apelante, ao contrário do afirmado no juízo singular, permaneceria como proprietário de fato e de direito do referido veículo; d) qualificando-se o recorrente como proprietário de fato e de direito do controvertido caminhão e lícita a fonte dos recursos que teria empregado em sua original aquisição, seria legítimo o seu pleito de devolução do citado veículo; e) a pronta devolução do referido caminhão se mostraria indispensável porque, devolvido o controvertido bem, o apelante poderia aliená-lo novamente, obtendo o numerário necessário ao adimplemento dos débitos indevidamente registrados em seu desfavor no DETRAN/PI e deixando de ter envolvido seu nome em qualquer ilícito; f) haveria, ainda, que se observar que o recorrente não teria nenhum envolvimento com o ilícito cometido pelo condutor do veículo ((...)), o que seria evidente em virtude de este ter confessado a prática criminosa. 3. O advogado do recorrente pontuou, ademais, que a pretensão de devolução do veículo encontraria amparo em entendimento corrente da Justiça Estadual Comum, salientando que, nela, seria facultado ao proprietário de um veículo manejar ação de busca e apreensão para a recuperação de sua posse. 4. Por fim, o causídico do recorrente ((...) MAZURKIEWISK (...)) aduziu, ainda, que: a) inicialmente, o apelante teria sabido da apreensão do caminhão em debate ao realizar, por si próprio, singelas consultas em sistemas virtuais; b) diante da descoberta supra, o recorrente haveria com ele travado contato, quando teria sido confirmada a apreensão referida. 5. Contrarrazoando a apelação, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF) asseverou que o pleito do recorrente haveria de ser rechaçado, já que: a) em verdade, nos termos do Estatuto Civil, o recorrente não mais se qualificaria como proprietário do caminhão em discussão porque, consoante afirmações dele próprio, teria alienado o citado bem; b) não se controvertendo acerca de bem imóvel, a alienação em comento restaria perfeita com a simples tradição, não socorrendo ao apelante a tese de essencialidade, para a plena transferência da propriedade, de anotação da venda perante o órgão de trânsito; c) a referida anotação da alienação junto ao DETRAN/PI, em realidade, seria providência de índole exclusivamente administrativa sem repercussões na seara cível, prestando-se, simplesmente, à viabilização do exercício do poder de polícia e das atividades voltadas à arrecadação tributária; d) em oposição ao sustentado pelo recorrente, a existência de anotação em nome dele junto ao órgão de trânsito não constituiria inequívoca prova de propriedade, apresentando-se, em verdade, como simples indício, nos termos de posicionamento jurisprudencial. 6. Em parecer, a Procuradoria Regional da República (PRR da 5ª Região) anuiu, em linhas gerais, com as considerações tecidas pelo MPF (desprovimento do apelo), consignando que: a) considerado o teor das alegações do próprio apelante (suposta prévia realização de venda do caminhão em debate), o recorrente não mais se apresentaria como proprietário do mencionado bem, não detendo, portanto, legitimidade para pleitear a sua devolução, já que, nos termos da legislação civilista (artigos 1.226 e 1.227 do Código Civil, bem como artigo 129, item 7º, da Lei nº 6.015/73), suficiente a tradição para a transferência da propriedade de bens móveis e que eventual anotação em Registro de Títulos e Documentos apenas se prestaria a produzir efeitos em relação a terceiros; b) suposta inércia do adquirente do veículo na anotação da transferência da propriedade perante o órgão de trânsito não teria o condão de desfazer a venda, não servindo, pois, como escudo ao recorrente; c) a devolução reclamada encontraria, ademais, óbice nas disposições constantes do artigo 118 do Código Processual Penal porquanto o bem em comento, como ressaltado pelo Parquet perante o juízo singular, ainda interessaria a persecução criminal em curso (ação penal nº 0800141-14.2020.4.05.8405, em que denunciado o indivíduo que conduzia o controvertido caminhão com a carga contrabandeada de cigarros chineses). 7. Traçados os principais pontos questionados no apelo, passa-se a analisar se assiste, ou não, razão ao recorrente, examinando-se, de início, o tema atinente à suposta alienação do caminhão em debate. 8. Compulsando os autos, observa-se, de plano, que não há inequívoca comprovação da pretensa inicial alienação a que alude o recorrente, já que o apelante sequer referiu informações mínimas sobre a hipotética venda, quedando silente acerca de fatos especialmente relevantes a qualquer operação de tal espécie, como: a) o nome do suposto adquirente do controvertido veículo; b) a data da pretensa alienação; c) o valor da transação. 9. A partir do caderno processual, verifica-se, ademais, que: a) o recorrente, pessoa sem profissão declarada nos presentes autos, mesmo após a suposta alienação, haveria, sem motivação declarada, continuado a ter peculiar interesse no caminhão em debate, buscando, aparentemente sem clara motivação, saber do paradeiro do veículo e quedando surpreso com suposta notícia de apreensão que haveria chegado ao seu conhecimento; b) o apelante, ainda após a pretensa venda, haveria, também sem patente razão, decidido consultar, perante o DETRAN/PI, a situação do veículo hipoteticamente alienado; c) ao tomar ciência da apreensão do referido veículo e da existência de débitos a ele associados, o recorrente haveria entrado em contato exatamente com o mesmo advogado que representa o indivíduo em flagrante preso ao conduzir o controvertido veículo com carga de cigarros contrabandeados (causídico (...) MAZURKIEWISK (...)), como se infere a partir de singela consulta ao sítio web da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte (ação penal nº 0800141-14.2020.4.05.8405, movida em face de (...)); d) o veículo em comento, como se depreende de cópia do Certificado de Registro de Veículo (CRV) acostada pelo próprio apelante, é, em princípio, destinado à locação, já que, no citado documento, anotado que ele se insere na categoria "aluguel"; e) o apelante, supostamente ao arrepio das normas legais, não preencheu as informações básicas da hipotética alienação no verso do CRV, não tendo, outrossim, comunicado, no prazo de 30 (trinta) dias da pretensa venda, a operação ao órgão de trânsito (item "a" das observações constantes do referido documento), obrigação esta estabelecida no CTB (artigo 134). 10. Consideradas todas as observações supra, não se tem robusta comprovação da efetiva realização de venda do veículo em discussão, persistindo, ao menos por ora, variados questionamentos relacionados ao citado veículo, ao ilícito de contrabando e ao papel do próprio apelante neste contexto (mero locador do veículo utilizado no ilícito, partícipe ou pessoa sem qualquer relação com o delito), o que, de per si, impede, nos termos do Estatuto Processual Penal (artigo 118), a sua pronta restituição, por persistência, na persecução criminal, de interesse no controvertido veículo. 11. Tecidas estas notas acerca da inexistência de comprovação da hipotética venda, da persistência, na persecutio criminis, de interesse no veículo em debate e da consequente impossibilidade, ao menos por enquanto, de se deliberar a respeito de "restituição", passa-se, apenas para a integralização da prestação jurisdicional, a declinar as razões que, mesmo se comprovada fosse a alienação - o que não ocorreu -, impediriam a acolhida do pleito do recorrente. 12. Ainda que, hipoteticamente, houvesse, nos presentes autos, inequívoca comprovação da suposta alienação invocada pelo apelante - comprovação esta inexistente -, não deteria o recorrente legitimidade para reclamar a restituição do veículo, já que: a) ao contrário do asseverado pela representação processual do apelante, não se exige, para a validade inter partes da transferência de propriedade de bens móveis (veículos automotores, e.g.), o formal registro da alienação, ocorrendo este fenômeno com a simples tradição (entrega da coisa ao adquirente), nos termos do artigo 1.226 do Código Civil; b) desnecessário o formal registro da transação para a sua validade entre as próprias partes, é irrelevante, para a determinação da titularidade do direito de propriedade, hipotética falta de comunicação da venda ao órgão de trânsito, não havendo, por conseguinte, que se cogitar de automática e imediata jurídica reversão da citada operação por suposta inércia do pretenso adquirente do veículo no tocante ao aludido ônus de comunicação, mas, simplesmente, da potencial imposição de multa em desfavor deste, nos termos do artigo 233 do CTB; c) o mencionado dever de comunicação, ademais, para a garantia da Administração Pública, também é, simultaneamente, imposto em desfavor do vendedor de veículo automotor, o qual, nos termos do artigo 134 do CTB, em oposição ao afirmado pela representação processual do recorrente, não é, em caso de descumprimento, "agraciado" com a retomada da propriedade do bem alienado, sofrendo, em realidade, verdadeira sanção com a sua solidária responsabilização pelas penalidades associadas ao veículo hipoteticamente vendido; d) desarrazoado, por todo o exposto, cogitar de reversão da alienação do veículo por descumprimento do encargo de sua comunicação ao DETRAN, o recorrente, se comprovada a alienação, não seria o proprietário de fato do citado bem e tampouco o seu proprietário de direito, não podendo, pois, sob esta condição, pugnar pela restituição do caminhão apreendido. 13. Por fim, registre-se, outrossim, que: a) os entendimentos colacionados aos autos pela representação processual do apelante referem situações diversas da correntemente analisada, não havendo, assim, que se cogitar da adoção de entendimento judicante externado em caso de bem móvel gravado com condição fiduciária; b) além de ilegítima, a descabida pretensão do recorrente, caso, teratologicamente, acatada fosse (devolução a ele do bem que ele próprio reconhece ter, supostamente, vendido), implicaria enriquecimento sem causa, o que não poderia se operar sob amparo do Poder Judiciário; c) se, ao fim, o controvertido bem, de fato, for alienado em pública hasta, não persistirá dano/prejuízo ao recorrente, já que, com a realização de hipotética futura venda, supostos débitos relativos ao veículo serão subrogados no preço. 14. Apelação criminal desprovida. F.
(TRF-5, PROCESSO: 08002641220204058405, APELAÇÃO CRIMINAL, DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO MACHADO CORDEIRO, 2ª TURMA, JULGAMENTO: 18/05/2021)