ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MPF. SORTEIOS TELEVISIVOS. 0900.
PORTARIAS 413/97 E 1.285/97, DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. CONTROLE JUDICIAL. CABIMENTO. ILEGALIDADE RECONHECIDA. NECESSÁRIA MODULAÇÃO DOS EFEITOS.
ART. 927,
§3º/
CPC. BOA-FÉ OBJETIVA. PROTEÇÃO À CONFIANÇA LEGÍTIMA. RECURSOS ESPECIAIS PROVIDOS.
I - O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra a União e determinados
... +1167 PALAVRAS
...corréus, questionando a legalidade das Portarias nos 413/97 e n° 1.285/97, editadas pelo Ministro da Justiça com base na Lei n° 5.768, de 20 de dezembro de 1971, que tratam sobre a distribuição gratuita de prêmios, mediante sorteio, vale -brinde ou concurso, estabelecendo normas de proteção à poupança popular, em razão de sorteios televisivos pelo sistema "0900".
II - Alega o Parquet Federal que as corrés atuaram de forma lesiva aos interesses dos consumidores, sendo a entidade filantrópica "MERA DESPESA", pois o benefício e o proveito econômico arrecadado pelo sistema de concursos voltavam-se para os organizadores dos sorteios.
Requer, assim, que (i) não seja mais concedida autorização pelo ente federal para a realização de sorteios por entidades filantrópicas com base na Portaria 413/97 e na Portaria 1285/97;
(ii) que seja suspensa toda e qualquer atividade de sorteio televisivo por parte das corrés que tenha como base as citadas portarias e (iii) a condenação dos réus pelos danos morais aos consumidores, sendo o valor destinado ao Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos, de que trata o artigo 13 da Lei n.° 7.347/85, sujeitos a atualização e juros; bem como que os réus sejam responsabilizados, com exceção da União, a restituir a cada entidade filantrópica participante dos sorteios a quantia devida aos sorteios já realizados de acordo com a Lei n.°5 768/71, quantia esta a ser apurada em execução de sentença.
III - A sentença julgou procedentes os pedidos. O TRF-3, por sua vez, deu parcial provimento à remessa oficial, para reformar a sentença e reconhecer a ilegalidade das Portarias n°s 413/97 e 1285/97 e os atos dela emanados, por serem contrárias à Lei n. 5768/71, além de reconhecer a existência de danos materiais e morais sofridos pela coletividade.
IV - Interpostos recursos especiais por todas as partes, a Corte de origem não os admitiu, razão pela qual foram interpostos os agravos previstos no art. 1.042 do CPC. Considerando que as partes agravantes impugnaram a fundamentação apresentada na decisão agravada, e atendidos os demais pressupostos de admissibilidade do agravo, é possível o exame dos recursos especiais.
V - De acordo com o Regimento Interno deste Tribunal, nos termos do § 1º, do Art. 71, "Se o relator deixar o Tribunal ou transferir-se de Seção, a prevenção será do órgão julgador". Como é de notório conhecimento, no ano de 2016, o Ministro Humberto Martins deixou de fazer parte da composição desta Segunda Turma porque fora designado Vice-Presidente desta Corte e, bem assim, no ano de 2018, assumiu o cargo de Corregedor-Nacional da Justiça no Conselho da Justiça Federal e, sequencialmente, a Presidência deste Tribunal.
VI - Por esta razão, o Recurso Especial n. 1.120.376/SP, interposto no âmbito do presente processo, passou a ser de minha relatoria, razão pela qual torno-me relator deste AREsp.
VII - Deve-se afastar, ainda, a ofensa ao art. 1.022 do CPC/2015, levantada por alguns recorrentes, eis que o acórdão recorrido se manifestou de forma clara e fundamentada sobre a matéria posta em debate na medida necessária para o deslinde da controvérsia. Não há que se falar, portanto, em negativa de prestação jurisdicional, visto que tal somente se configura quando, na apreciação de recurso, o órgão julgador insiste em omitir pronunciamento sobre questão que deveria ser decidida, e não foi.
VIII - Quando à alegação de que a ACP não rem cabimento para efetuar controle de legalidade/constitucionalidade de ato normativo, ressalte-se que este Tribunal já possui o consolidado entendimento de que "é possível a declaração incidental de inconstitucionalidade, na ação civil pública, de quaisquer leis ou atos normativos do Poder Público, desde que a controvérsia constitucional não figure como pedido, mas sim como causa de pedir, fundamento ou simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal, em torno da tutela do interesse público". Precedentes.
IX - Alguns recorrentes alegam sua ilegitimidade passiva, sob o fundamento de que não eram responsáveis pela produção dos programas televisivos, já se tratava de uma produção independente. Contudo, a Corte a quo foi clara ao afirmar que, no que se refere à ilegitimidade passiva, "sua análise foi contextualizada e inserida em um conjunto de atos destinados ao sorteio, desde a confecção dos contratos escritos até a veiculação dos programas vinculados aos sorteios, todos entrelaçados entre si, com finalidades bem definidas". A alteração deste entendimento é obstada pela incidência da Súmula 7/STJ.
X - O acórdão recorrido, de igual forma, detalhou como ocorria o procedimento do sistema 0900, de modo que se trata de fato incontroverso que os recorrentes eram autorizados pelas entidades filantrópicas a realizar os sorteios televisivos, mediante a celebração de contratos. Não comporta, assim, o reexame dos fatos por esta Corte, diante do que estabelece as Súmulas 5 e 7/STJ.
XI - No que se refere à alegação de que a sentença foi prolatada apenas considerando as provas produzidas no Inquérito Civil Público n. 9/97, não tenho sido elaborada qualquer prova no processo judicial, cabe destacar que o inquérito civil - procedimento administrativo e inquisitivo - goza da presunção relativa de veracidade, inerente aos atos administrativos. Segundo o aresto combatido, os recorrentes não demonstraram qualquer contraprova hábil a desconstituir os fatos narrados pelo MPF.
XII - As já citadas Portarias estabeleceram critérios para a autorização e realização de sorteios por entidades filantrópicas, no contexto veiculado pela lei, em especial o estabelecido pelo artigo 4°, da Lei n° 5.768, em sua redação conferida pela Lei nº 5.864, de 12.12.72. Entretanto, o Tribunal de origem realizou um controle de legalidade dos atos normativos impugnados, afirmando a sua incompatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio.
XIII - Com efeito, a presunção de legitimidade e veracidade dos atos administrativos tem caráter relativo (juris tantum), podendo ser afastada por prova em contrário. Da análise dos documentos e provas carreadas aos autos, o Tribunal de origem afastou a legitimidade das Portarias n. 413/97 e n. 1285/97, editadas pelo Ministério da Justiça, hipótese plenamente possível em razão da sujeição dos atos administrativos a controle judicial, sobretudo no aspecto da legalidade.
XIV - Ainda que se ratifique o entendimento pela ilegalidade das Portarias, deve-se considerar que os recorrentes realizaram os sorteios televisivos do 0900 fundamentados naqueles atos. À luz dos princípios da boa-fé objetiva e da segurança jurídica, embora as Portarias sejam, de fato, ilegais, não se mostra proporcional nem razoável obrigar os recorridos a pagarem indenização por danos materiais e morais sofridos pela coletividade, já que estavam meramente cumprindo um ato normativo emanado pelo Ministério da Justiça.
XV - O CPC, em seu art. 927, §3º, autoriza que os Tribunais modulem os efeitos de suas decisões, em prol do interesse social e da segurança jurídica. À luz dessa previsão legal, plenamente cabível a modulação dos efeitos, no sentido de se considerar a ilegalidade das Portarias n. 413/97 e n. 1285/97, do Ministério da Justiça, a partir da publicação do acórdão recorrido. Destaca-se que esta decretação de ilegalidade não será capaz de gerar qualquer responsabilidade civil dos recorrentes a favor da coletividade.
XVI - Recursos especiais parcialmente conhecidos e, nesta extensão, parcialmente providos para modular os efeitos da declaração de ilegalidade das Portarias n. 413/97 e n. 1285/97, do Ministério da Justiça, imposta pelo Tribunal de origem, assentando a sua incidência apenas a partir da publicação do acórdão recorrido, afastando-se, por conseguinte, todas as condenações monetárias e consectários anteriormente impostos, restando prejudicado o Recurso Especial do Ministério Público Federal e os capítulos recursais dos demais recorrentes que impugnam a fixação da indenização.
(STJ, AREsp n. 2.300.223/SP, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 6/6/2023, DJe de 9/6/2023.)