ADMINISTRATIVO E CIVIL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO NÃO DEMONSTRADA. CONFLITO INDÍGENA NA ESTRADA. MUNICÍPIO DE CAARAPÓ/MS. INCÊNDIO DO CAMINHÃO. NEXO CAUSAL NÃO DEMONSTRADO. RECURSO IMPROVIDO.
1. Ação de Indenização Por Danos Materiais ajuizada por Concord Transporte Ltda – ME contra a União e a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, na qual se pleiteia a condenação das Rés ao ressarcimento, no valor de R$ 217.978,00 (duzentos e dezessete mil, novecentos e setenta e oito reais), relativo aos valores dos acessórios não cobertos pelo seguro de seu veículo e dos lucros cessantes, em relação ao caminhão queimado pelos indígenas na Rodovia MS 280, Município de Caarapó/MS.
2. Sustentou a Parte Autora que no dia 14/06/2016
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...houve o bloqueio da Rodovia MS 280 e no momento em que o caminhão (marca Ford/cargo 2429 L, placas NRZ-0737, Ano/Modelo 2013, de cor vermelha, adequado para o transporte de máquinas) trafegava no local os indígenas atearam fogo, o que resultou na perda total do bem e da mercadoria.3. Sobreveio sentença de improcedência da Ação, com fundamento o artigo 487, inciso I, do NCPC, condenando o Autor ao pagamento de honorários advocatícios em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa dividido entre os Réus, ID 129664110.4. Dos direitos dos povos indígenas. O artigo 25 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007, estabelece: “Os povos indígenas têm o direito de manter e de fortalecer sua própria relação espiritual com as terras, territórios, águas, mares costeiros e outros recursos que tradicionalmente possuam ou ocupem e utilizem, e de assumir as responsabilidades que a esse respeito incorrem em relação às gerações futuras”.5. Da proteção do indígena na Constituição Brasileira.
É certo que antes da Constituição Federal de 1.988 predominava o entendimento de que o povo indígena gradativamente deveria incluído na sociedade ocidental, mediante o acompanhamento da FUNAI e do Ministério Público, cujo entendimento perdurou por longos anos. A FUNAI, órgão indigenista, criada pela Lei n. 5.371/67, é vinculada ao Ministério da Justiça, sendo a principal coordenadora e executora da política indigenista do Governo Federal. Já o Estatuto do Índio, Lei n. 6.001/1973, foi criado para regulamentar a situação jurídica dos índios ou silvícolas, nas Comunidades Indígenas, com a finalidade de proteger, preservar os costumes, a cultura, além de integrá-los progressivamente à sociedade da época.6. A Constituição Federal de 1.988 ampliou a proteção ao índio, não apenas em relação aos direitos sobre a terra, mas reconheceu sua organização, seus costumes, crenças e tradições, determinando, ainda, que caberá à União demarcar as suas terras, mediante a orientação da FUNAI.7. Da capacidade civil do índio à luz da Constituição e do Código Civil de 2002. Artigos 231 e 232, ambos da CF. A Constituição Federal expressamente conferiu legitimação processual plena aos índios na defesa de seus direitos e interesses, consoante o disposto no artigo 232.8. Após o reconhecimento constitucional da capacidade processual das Comunidades indígenas e da capacidade dos índios para os atos da vida civil os indígenas passaram a ser responsabilizados por seus atos. A Constituição Federal se sobrepõe aos dispositivos do Estatuto do Índio. O artigo 3º da CF/88 dispõe que um dos fundamentos da República é “..... IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.9. Ao longo de décadas a legislação conferiu a proteção necessária quanto à posse de suas terras, a preservação da cultura e tradição, garantia à saúde, ao bem-estar geral, conferindo aos indígenas o pleno exercício de todos os direitos e obrigações, além da capacidade do ajuizamento de Ações Judiciais. O Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/1973), distinguia índios integrados dos índios não integrados (artigos 3º e 4º. Assim, somente os índios não integrados deveriam assistidos ou representados pela FUNAI (órgão federal de assistência). O Código Civil de 2002 retirou dos índios a categoria definida no Código Civil de 1.916 como “relativamente incapazes”. Com a promulgação da Constituição de 1988 essa classificação não existe mais, na medida em que foi reconhecida a capacidade processual das Comunidades Indígenas, além da capacidade jurídica dos índios, restando prejudicada qualquer distinção. O parágrafo único do artigo 8º do Estatuto do Índio estabelece que: “São nulos os atos praticados entre índios não integrados e qualquer pessoa estranha à comunidade indígena quando não tenha havido assistência do órgão tutelar competente. Parágrafo único. Não se aplica a regra deste artigo no caso em que o índio revele consciência e conhecimento do ato praticado, desde que não lhe seja prejudicial, e da extensão dos seus efetivos.”10. Superada esta questão acerca da integração dos cidadãos indígenas na sociedade, passo ao exame do caso concreto. No caso, não se tratam de índios isolados, mas índios que estão plenamente integrados na sociedade com plena capacidade para o enfrentamento dos problemas que cercam a sociedade, possuindo consciência política e social quanto aos seus direitos e obrigações junto à sociedade e ao Estado; inclusive, promoveram manifestação na citada Rodovia. Nesse sentido: TRF4, AC 5002806-87.2018.4.04.7001, TERCEIRA TURMA, Relatora MARGA INGE BARTH TESSLER, juntado aos autos em 03/06/2020, TRF4, AC 2007.71.04.006853-4, Quarta Turma, Relator Edgard Antônio Lippmann Júnior, D.E. 09/03/2009 e TRF4, APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0000244-50.2010.404.7203, 8ª TURMA, Des. Federal LEANDRO PAULSEN, POR UNANIMIDADE, D.E. 24/04/2014, PUBLICAÇÃO EM 25/04/2014)11. Da responsabilidade objetiva do Estado. A Constituição Federal de 1988 acolheu a responsabilidade objetiva do Estado. Artigo 37, § 6º. A responsabilidade civil imputada ao Estado por ato danoso de seu preposto é objetiva, nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, impondo-se o dever de indenizar quando houver dano ao patrimônio de outrem e nexo causal entre o dano e o comportamento do preposto. Pelo que pelo que se depreende do acervo fático-probatório colacionado aos autos, o recurso não merece provimento.12. Para a configuração da responsabilidade objetiva do Estado é necessário a existência dos pressupostos, tais como: nexo de causalidade e dano. Segundo se depreende dos elementos dos autos, não há como atribuir a responsabilidade civil para a União e à FUNAI por omissão quanto aos danos causados no caminhão do Recorrente. Considerando que os indígenas são plenamente capazes não se poderá afirmar que as Apeladas são as responsáveis pelos atos praticados pelos indígenas na Rodovia no momento em que alguém do grupo ateou fogo no caminhão. Para o ressarcimento dos danos materiais a Parte Autora, ora Apelante, não demonstrou a existência de ato praticado pelo agente público e o nexo de causalidade. Não há dano a ser ressarcido.13. Verifica-se que o motorista do Apelante também descumpriu seus deveres de parar o veículo na Rodovia diante da manifestação naquele trecho, a fim de evitar o conflito direito com os manifestantes. O Relatório Circunstanciado da FUNAI apontou que:
“.... 10. O motorista do caminhão em questão, na ocasião, fora visto por várias testemunhas dirigindo em alta velocidade, de maneira agressiva, possivelmente motivado por relatos transmitidos pela rádio local pela estrada que corta o coração da Aldeia Te yikeu, colocando em risco as diversas pessoas que circulam por esse estrada a (sic) pé. Relata-se, até mesmo, que teria quase atropelado uma mulher com uma criança. 11. Em sequência, seu veículo teria chegado ao ponto onde uma viatura policial encontra-se parada, em posição transversal à pista. Testemunhas à época narravam que o motorista não conseguiu prosseguir, sendo incapaz de passar o reduzido espaço restante, já que dirigia em velocidade excessiva para uma estrada não pavimentada. Naquele local, então, viu-se cercado por vários indígenas, que já se encontravam ali em virtude de desentendimento prévio com os policiais. Os relatos à época são de que o motorista do caminhão reagiria, então buscando arma de fogo que se encontrava dentro da cabine do caminhão. A soma de seus comportamentos com a situação premente em que se encontrava a comunidade, portanto, teria feito com que os presentes rendessem o motorista e mantivesse junto aos policiais que ali já se encontravam. Os mais exaltados, naquele momento, teriam ido além e depredado o veículo. Até onde se sabe, no entanto, nenhuma perícia ou investigação que pudesse apontar a autoria do fato foi realizada”, ID 129664023. Por sua vez, a Parte Autora nos memoriais finais apresentados apenas ressaltou que no depoimento prestado na audiência pelo motorista, Sr. (...), confirmou que o caminhão foi incendiado pelos índios, ID 129664097.14. Nesse sentido: TRF 3ª Região, 6ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 0008291-23.2012.4.03.6119, Rel. Juiz Federal Convocado FABIANO LOPES CARRARO, julgado em 24/01/2020, e - DJF3 Judicial 1 DATA: 04/02/2020.15. Da ausência de omissão por Parte da União e da FUNAI. Tratando-se de responsabilidade objetiva a Parte Autora não comprovou a existência de ação e que o agente agiu com culpa ou dolo, além do nexo de causalidade. No caso, a função da FUNAI é promover o desenvolvimento dos índios, respeitar os costumes e tradições, mas jamais a vigilância sobre seus atos. Artigos 7º e 8, ambos do Estatuto do Índio. A Carta Magna atribuiu à União a responsabilidade de proteger e respeitar os direitos dos povos indígenas (artigo 231 da CF). A artigo 232 da Constituição Federal: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.16. Nesse sentido: TRF-4 - AC: 1262 RS 2004.71.04.001262-0, Relator: FERNANDO QUADROS DA SILVA, Data de Julgamento: 05/04/2011, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: D.E. 11/04/2011).17. O próprio Ministério Público Federal em seu Parecer ressaltou que: “...... os fatos ocorreram quando do conflito que ficou conhecido como o “Massacre de Caarapó”, onde fazendeiros da região fortemente armados e agrupados, tomaram a iniciativa de direcionar ataques aos índios, os quais culminaram com ferimentos e morte de um dos indígenas, conforme amplamente divulgado pela imprensa e demais órgãos de controle policial. Relembre-se, aliás, que segundo apontam as informações, nenhum fazendeiro restou ferido no conflito, o que verdadeiramente demonstra a desproporcionalidade da força usada contra os indígenas. A partir daí conclui-se que o conflito em questão não foi iniciado, gerido ou fomentado pela FUNAI ou União Federal. De fato, tal como ressaltam as apeladas, note-se que a própria Polícia Militar do Estado de Mato Grosso do Sul estava presente no momento dos fatos, sendo que a ela competia o pleno exercício do Poder de Polícia. Importante consignar que - não obstante o motorista da apelante (Sr.
(...)) tenha negado em audiência -, diversos noticiários relataram que “o motorista de um caminhão teria jogado o veículo contra os índios, que teriam colocado fogo no veículo”, indo na mesma direção do quanto relatado no item 10 do Relatório Circunstanciado da FUNAI (ID Num. 5257321, p. 05), o que evidencia a participação e culpa do preposto da apelante no evento danoso”, ID 130885023.
18. Negado provimento à Apelação.
(TRF 3ª Região, 1ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5000149-92.2018.4.03.6002, Rel. Desembargador Federal HELIO EGYDIO DE MATOS NOGUEIRA, julgado em 03/09/2021, Intimação via sistema DATA: 09/09/2021)