CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL CONFIGURADO. OCUPAÇÃO E EDIFICAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. RESPONSABILIDADE OBJETIVA E PROPTER REM DO POSSUIDOR. FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE.
Trata-se de apelação interposta por
(...), visando a reforma da r. sentença que, em sede de ação civil pública, julgou parcialmente procedentes o pedido para: “(I) determinar a desocupação e demolição das edificações ou obras construídas pelo requerido na área de propriedade da CESP, no prazo de 06 (seis) meses, a ser contado do trânsito em julgado, bem como para (II) condená-lo a reparar integralmente a área degradada descrita na inicial – caso persista a necessidade de reparação, a ser apurada em vistoria à época da desocupação
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...de fato –, observando-se as providências e condicionamentos registrados na fundamentação”.
De imediato, embora a Lei nº 7.347/85 silencie a respeito, a r. sentença deverá ser submetida ao reexame necessário (interpretação analógica do art. 19 da Lei nº 4.717/65), conforme entendimento da 4ª Turma deste Tribunal e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Em matéria processual, afasta-se a alegação de cerceamento de defesa. Com efeito, o magistrado, no uso de suas atribuições, deverá estabelecer a produção de provas que sejam importantes e necessárias ao deslinde da causa. Sendo destinatário natural da prova, o juiz tem o poder de decidir acerca da conveniência e da oportunidade de sua produção, visando obstar a prática de atos inúteis ou protelatórios, desnecessários à solução da causa. Os documentos existentes, em especial o relatório de inspeção ambiental e patrimonial, são suficientes para o deslinde do caso.
Já no tocante ao mérito, o art. 225 da Constituição Federal consagrou o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental, criando o dever de o agente degradador reparar os danos causados e estabeleceu o fundamento de responsabilização de agentes poluidores, pessoas físicas e jurídicas. Para assegurar a efetividade desse direito, a CF determina ao Poder Público, entre outras obrigações, que crie espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos em todas as unidades da Federação.
Essa disposição constitucional recepcionou a proteção anteriormente existente na esfera da legislação ordinária, destacando-se, em especial, a Lei nº 4.771/1965, que instituiu o antigo Código Florestal. Em 18 de julho de 1989 foi editada a Lei nº 7.803, que incluiu um parágrafo único ao art. 2º do Código Florestal então vigente, informando que os limites definidos como áreas de proteção permanente (que haviam sido ampliados pela Lei nº 7.511/86), também se aplicavam às áreas urbanas e deveriam ser observados nos planos diretores municipais.
Referida legislação infraconstitucional foi revogada com a edição do novo Código Florestal (Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012).
Com relação à Lei nº 12.651/2012, ressalta-se que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento de ação declaratória de constitucionalidade (ADC 42) e de 4 (quatro) ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937), analisou a constitucionalidade de dispositivos do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), que estabeleceu normas gerais sobre a proteção da vegetação, áreas de preservação permanente e as áreas de reserva legal; bem como sobre a exploração florestal, o suprimento de matéria-prima florestal, o controle da origem dos produtos florestais e o controle e prevenção dos incêndios florestais.
Sobre as normas aplicáveis ao presente caso, ao declarar a constitucionalidade dos artigos 5º, caput e §§ 1º e 2º, e 62, ambos, da Lei nº 12.651/2012 (redução da largura mínima da APP no entorno de reservatórios d’água artificiais implantados para abastecimento público e geração de energia), afirmou o STF: “o estabelecimento legal de metragem máxima para áreas de proteção permanente no entorno de reservatórios d’água artificiais constitui legítima opção de política pública ante a necessidade de compatibilizar a proteção ambiental com a produtividade das propriedades contíguas, em atenção a imperativos de desenvolvimento nacional e eventualmente da própria prestação do serviço público de abastecimento ou geração de energia (art. 175 da CF). Por sua vez, a definição de dimensões diferenciadas da APP em relação a reservatórios registrados ou contratados no período anterior à MP nº 2166-67/2001 se enquadra na liberdade do legislador para adaptar a necessidade de proteção ambiental às particularidades de cada situação, em atenção ao poder que lhe confere a Constituição para alterar ou suprimir espaços territoriais especialmente protegidos (art. 225, § 1º, III). Trata-se da fixação de uma referência cronológica básica que serve de parâmetro para estabilizar expectativas quanto ao cumprimento das obrigações ambientais exigíveis em consonância com o tempo de implantação do empreendimento”.
Destaca-se, também, o entendimento consolidado no Supremo Tribunal Federal “no sentido de que a aplicação dos princípios tempus regit actum e do não retrocesso ambiental para fazer incidir a Lei 4.771/1965 (Código Florestal revogado) em detrimento da Lei 12.651/2012 (Novo Código Florestal) afronta o que restou decidido pelo Plenário deste E. STF no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 4.937, 4.903 e 4.902 e da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 42, bem como em inobservância da Súmula Vinculante nº 10” (STJ, Rcl nº 49147, Relator Edson Fachin, Julgado em 29/04/2022, Publicado em 02/05/2022).
Como se vê, a presente ação deve se submeter às decisões do Supremo Tribunal Federal e, consequentemente, às disposições contidas na Lei nº 12.651/2012.
Portanto, nos termos da Lei nº 12.651/2012, em relação a reservatórios registrados ou contratados no período anterior à MP nº 2166-67/2001, a faixa da Área de Preservação Permanente será a distância entre o nível máximo operativo normal e a cota máxima maximorum.
O mesmo diploma legal fixou, em seus artigos 7º, 8º e 9º, o regime de proteção das Áreas de Preservação Permanente.
Portanto, que as Áreas de Preservação Permanente são espaços de proteção impositiva e integral, que não admitem qualquer tipo de exploração. Em outros termos, são áreas destinadas, unicamente, à proteção do meio ambiente. A delimitação do uso de tais terrenos pelo legislador objetivou, portanto, evitar a ocorrência de desequilíbrio irreparável ao ecossistema, mediante proteção dos recursos hídricos, da biodiversidade, da fauna e da flora.
Observa-se que, com relação à tutela ambiental, se aplica a responsabilidade objetiva, ou seja, não há espaço para a discussão de culpa, bastando a comprovação da atividade e o nexo causal com o resultado danoso, consoante determinação expressa do artigo 4º, inciso VII, c/c artigo 14, § 1º, ambos, da Lei nº 6.938/1981.
Vale lembrar, ainda, quanto ao cometimento de danos ambientais e ao dever de repará-los, tem-se que as obrigações decorrentes de eventuais prejuízos ou interferências negativas ao meio ambiente são propter rem, possuindo caráter acessório à atividade ou propriedade em que ocorreu a poluição ou degradação. Está claro que o adquirente é responsável pelo passivo ambiental do imóvel adquirido. Caso contrário, a degradação ambiental dificilmente seria reparada, uma vez que bastaria cometer-se a infração e desfazer-se do bem lesado para que o dano ambiental estivesse consolidado e legitimado, sem qualquer ônus reparatório.
Cabe reconhecer, na realidade, que o simples fato de o novo proprietário/possuidor se omitir no que tange à necessária regularização ambiental é mais do que suficiente para caracterizar o nexo causal. Ademais, sua ação ou omissão, além de não garantir a desejada reparação, permitirá a continuidade do dano ambiental iniciado por outrem. Daí, ser inegável sua responsabilidade civil. Neste sentido, o atual Código Florestal (Lei nº 12.651/12) preceitua, em seu artigo 2º, § 2º, que "as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural".
Registra-se que a Constituição Federal estabelece que "a propriedade atenderá a sua função social" (art. 5º, inciso XXIII) e que o Código Civil assinala que "o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas" (artigo 1.228, § 1º, da Lei 10.406/02).
Não se pode negar, portanto, que a função social da propriedade só é observada se utilizada de forma racional, com a preservação do meio ambiente, e se atendidos os objetivos previstos na legislação para cada tipo de área protegida. Desrespeitar uma área definida como de Preservação Permanente, construindo-se, por exemplo, um imóvel no local protegido, significa descumprir sua função ambiental, o que é suficiente para caracterizar o dano ao meio ambiente. Tal prejuízo só pode ser reparado com a destruição do imóvel erguido em local indevido, o que possibilitará a regeneração natural da vegetação originariamente existente e garantirá o retorno da função socioambiental daquela propriedade.
No caso dos autos, “conforme se extrai dos documentos juntados com a inicial, com destaque para o relatório de inspeção ambiental e patrimonial, elaborado em 15/04/2015 (ID 23450473, fls. 46/55), apurou-se que o réu mantinha construção de parte de sua casa, com 48 m2 de área, bem como fossa e calçada, medindo, respectivamente, 1 m² e 67,76 m2, localizados na área de preservação permanente. Com efeito, por meio de inspeção ambiental e patrimonial, constatou-se que as intervenções antrópicas atribuídas ao demandado estavam localizadas a 266,15 e 257,40 metros em relação ao “nível máximo maximorum” (fixado em 266,30 metros em relação ao nível do mar) – ID 23450473, fls. 50/52, ou seja, dentro da APP definida com base nas disposições do artigo 62 do Código Florestal”.
Assim, não há dúvidas que o referido imóvel se localiza em área de preservação permanente, bem como da existência do dano ambiental.
Salienta-se, por oportuno, no que se refere alegação de ser o imóvel a única moradia do apelante, como bem observou a r. sentença: “não há dúvida de se estar diante de uma questão social envolvendo o direito constitucional à moradia, afetado por um fato comum (origem), qual seja, a notificação emitida pela CESP visando à retirada do requerido, que ergueu construção dentro da área de preservação permanente do imóvel pertencente à parte autora, instituída para proteger o reservatório da Usina Hidrelétrica. Nesse contexto de informações, conquanto o direito social à moradia não possa se sobrepor ao direito de propriedade em tela, destinada à preservação ambiental, a solução da controvérsia deve ser dirimida à luz dos princípios da dignidade humana, da razoabilidade e da proporcionalidade, sem que se seja ofenda a conveniência e oportunidade administrativas. Assim, considerando a antiguidade da ocupação, a ausência de informações acerca da destinação específica do bem (não afeto à prestação de um serviço público essencial) e, por fim, a necessidade de se garantir, ainda que temporariamente, o direito à moradia, impõe-se o acolhimento, em parte, do pedido, de modo a conceder um prazo para a desocupação do imóvel em questão”.
Por fim, não há que se falar em indenização por supostas benfeitorias, haja vista que, nos termos do parecer da Procuradoria Regional da República, “em sendo área de posse da CESP, bem público da União, como bem ponderou a própria CESP em contrarrazões recursais “não se é possível falar em usucapião ou direito adquirido em permanecer no imóvel, tampouco direito indenizatório pelas supostas benfeitorias, como bem elucida a
súmula 619 do STJ”.
R. sentença mantida.
Remessa oficial, tida por interposta, e apelação não provida.
(TRF 3ª Região, 4ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 0003412-25.2015.4.03.6003, Rel. Desembargador Federal MONICA AUTRAN MACHADO NOBRE, julgado em 03/04/2023, Intimação via sistema DATA: 11/04/2023)