PROCESSUAL PENAL E PENAL. OPERAÇÃO MAUS CAMINHOS. REAFIRMAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. CRIME DE PECULATO. CONTRATO DE LAVAGEM DE ROUPA HOSPITALAR. SUPERFATURAMENTO NÃO COMPROVADO. AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE. ABSOLVIÇÃO DOS RÉUS. 1. Trata-se de apelações interpostas por M.M., E.L. e J.N. contra sentença que rejeitou as preliminares suscitadas e julgou procedente a pretensão punitiva do Estado para condená-los como incursos nas penas do
artigo 312 (peculato), caput, c/c os
artigos 30 e
71, todos do
Código Penal. 2. Pedido do MPF para suspensão até o julgamento do HC 1008660-34.2019.4.01.0000. Não há como ser acolhida essa pretensão.
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...O lugar natural para julgamento de questão relativa à competência é no próprio processo principal, ou em exceção de competência, e não em sede de habeas corpus. A par disso, o fato de haver prejudicialidade externa não impede o imediato julgamento desta demanda, na medida em que o processo que for definitivamente julgado absorverá aqueloutro que for julgado depois. Em arremate, há o risco de prescrição da pretensão punitiva iminente, prevista para 28/07/2023, o que impõe o imediato julgamento desta demanda. 3. Preliminar de incompetência da Justiça Federal rejeitada. Tendo a questão sido questionada pelo mesmo Réu em momento anterior, na medida em que ajuizada a exceção de incompetência, e julgada esta improcedente, forçoso é concluir-se no sentido de que a matéria encontra-se preclusa (STJ, HC 106074). Este Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por sua Terceira Turma, por unanimidade, também já havia se pronunciado sobre a competência deste foro federal para processo e julgamento de ação penal no âmbito da 2ª fase da Operação Maus Caminhos, chamada Operação Custo Político, no HC 1039693-42.2019.4.01.0000, julgado em 19/05/2020. Mais uma vez, esta Terceira Turma, à unanimidade, em 28/06/2022, também definiu a competência da Justiça Federal para julgamento da Apelação Criminal nº 0000041-09.2017.4.01.3200, oriunda da Operação Maus Caminhos, na qual se apurou o cometimento do crime de organização, estando pendente de embargos de declaração que não discutem a questão da competência. 4. O artigo 33, § 4° da Lei 8.080/90 expressamente dispõe que o Ministério da Saúde acompanhará, através de seu sistema de auditoria, a conformidade à programação aprovada da aplicação dos recursos repassados a Estados e Municípios. Constatada a malversação, desvio ou não aplicação dos recursos, caberá ao Ministério da Saúde aplicar as medidas previstas em lei. Não há como negar a persistência do interesse da União na fiscalização das verbas destinadas a SUS, mesmo quando repassadas aos Estados e Municípios Fundo a Fundo (quer dizer, transferência regular e automática diretamente do FNS para os Estados, Municípios e Distrito federal, independentemente de convênio), notadamente diante do caráter nacional do sistema (SUS) - ainda que organizado de forma regionalizada (art. 8° da Lei 8.080/90), com descentralização dos serviços e ações (art. 16, inciso XV, Lei 8.080/90) - como também em razão da relevância do direito fundamental à saúde, lembrando que os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País (art. 3°, caput da Lei 8.080/90). 5. Há farta jurisprudência atualizada do Tribunal de Contas da União, já sob a égide da Lei Complementar n. 141/2012, reconhecendo sua atribuição para fiscalização dos recursos do SUS, mesmo quando transferidos via fundo a fundo para entes federados. O Plenário do TCU já sedimentou entendimento no sentido de que o art. 27 da Lei Complementar 141/2012 se refere exclusivamente aos débitos decorrentes de desvios de objeto ou de finalidade, nos quais os recursos são aplicados em prol da sociedade, mas em objeto ou finalidade distintos do pactuado. A norma não faz menção aos demais casos, em que os débitos são originários de efetivo dano ao erário, a exemplo de desvios, desfalques, superfaturamentos, ou ausência de comprovação das despesas realizadas. Diante disso, não poderia o FNS estender a suposta aplicação da Lei Complementar 141/2012 a todos os débitos referentes às transferências fundo a fundo (Acórdão 1072/2017 - Plenário, julgado na sessão do dia 25/05/2017). 6. Não há como se afastar a atribuição do Tribunal de Contas da União para efetivar o controle externo, mesmo nas hipóteses em que se cuidar de transferência fundo a fundo e incorporadas ao patrimônio dos Estados, notadamente diante da previsão expressa do parágrafo único do art. 18 da Lei Complementar 141/2012 que faz referência direta ao art. 71 da Lei Maior que prevê justamente o controle externo do Tribunal de Contas para fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município. 7. É de ser aplicado na hipótese entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal no sentido de que o fato de a verba repassada ser proveniente de recursos federais fiscalizáveis pelo TCU basta para afirmar a existência de interesse da União e a consequente competência da Justiça Federal para apreciar os autos (ARE 1367965 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 06/03/2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 09-03-2023 PUBLIC 10-03-2023). Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça reconhece a competência da Justiça Federal para processo e julgamento dos feitos envolvendo desvios relacionados a recursos do SUS, ainda que incorporados aos fundos de destinos, tendo em vista o dever de fiscalização e supervisão do governo federal. 8. Os contratos de gestão que foram firmados pelo Instituto Novos Caminhos com a SUSAM/AM possuem cláusulas que demonstram o interesse da União, notadamente diante da previsão expressa de financiamento federal na consecução do Contrato de Gestão a corroborar a competência Federal para processo e julgamento deste feito. O capital alocado junto ao FNS para o pagamento dos serviços do SUS realizados pelo INC, nos termos dos sobrecitados contratos de gestão, é transferido não apenas para o FES (Fundo a Fundo), mas também por meio de convênios, repasses e/ou termos de cooperação, estando tais recursos financeiros sob a fiscalização do respectivo Conselho de Saúde, sem prejuízo da fiscalização exercida pelos órgãos do sistema de Controle Interno do Poder Executivo e do Tribunal de Contas da União, ex vi do art. 3º, do Decreto nº 1.232 de 30 de agosto de 1994. 9. Versando esta demanda sobre crime de peculato, há prova de que os valores pagos à MEDIMAGEM pelo INC e apropriados pelos corréus foram provenientes de verbas repassadas pela União (SUS e FUNDEB). Sobre o tema, há ainda valiosas lições de Eugênio Pacelli que explica que se a Suprema Corte vem de decidir que eventual desvio de verba do FUNDEB - cujos recursos se originam dos vários entes estatais públicos e não só da União - afirmaria a competência federal somente por se inserirem (as verbas) no âmbito de uma política de uma natureza nacional (a educação), pode-se esperar que, em breve, sequer seja necessária a fiscalização do Tribunal de Contas da União e/ou a existência de Convênio para que se tenha configurada a competência federal para apreciar a matéria atinente ao SUS (PACELLI, Eugênio, Curso de Processo Penal, São Paulo: Atlas, 2020). 10. Não se olvida da existência de voto vencedor divergente, quando da apreciação do HC 1008660-34.2019.4.01.0000/AM, em 1º/12/2020, pendente de julgamento dos embargos de declaração, afastando a competência da Justiça Federal para conhecer dos processos oriundos da Operação Maus Caminhos. Contudo, bem examinado o teor da impetração, verifica-se que parte da equivocada premissa de que as verbas do Fundo Nacional de Saúde incorporaram-se ao patrimônio do Estado do Amazonas, não existindo qualquer fiscalização pelo TCU, de forma que a competência para processar e julgar os supostos desvios de recursos é da Justiça Estadual (petição inicial do HC n. 1008660-34.2019.4.01.0000, ID 12593455 - fl. 14). Ocorre, porém, que ausência de efetiva fiscalização por parte do TCU não equivale a ausência de atribuição constitucional para a realização da mencionada fiscalização. Neste sentido, o só fato de pontualmente o Tribunal de Contas da União ter concluído, quando do julgamento do Acórdão 5413/2017 - 2ª Câmara, pelo não conhecimento da representação por não preencher os requisitos de admissibilidade previstos no art. 235 do seu Regimento Interno não conduz à necessária conclusão de que está afastada a competência da Justiça Federal. Ao revés, bem examinado o teor do acórdão n. 5413/2017 do TCU, a conclusão que se impõe é a de que a fiscalização foi obstada pela insuficiência da documentação apresentada, valendo ainda o apontamento de que o objeto da representação era bastante limitado, consubstanciado no exame de possíveis irregularidade nos procedimentos licitatórios conduzidos pela Secretaria de Saúde do Estado do Amazonas (Susam) com recurso do SUS, não figurando, portanto, o INC como interessado, responsável ou recorrente. No particular, merece especial destaque a independência entre as esferas administrativa e judicial, de modo que, estabelecida a atribuição do Tribunal de Contas da União para fiscalização das verbas federais repassadas por meio de Contrato de Gestão ao INC, é desinfluente para a fixação da competência federal a efetiva existência de fiscalização, ou mesmo o resultado das fiscalizações levadas a cabo pelo TCU ou TCE. 11. Mérito. Ausência de materialidade. Verifica-se que 14 (quatorze) emissões de ordem bancária para a empresa ERHARD LANGE - ME (nome fantasia ITA SERVIÇOS) foram realizadas por J.N., ex-presidente do INC (de 04/11/2014 em diante), no montante original de R$ 630.000,00. Da análise das Notas Técnicas nºs 2.538/2016/REGIONAL/AM e 2678/2016/REGIONAL/AM e o Relatório do IPL 1.199/2015, observa-se que foi realizada fiscalização sobre os serviços prestados pela empresa ERHARD LANGE - ME (ITA SERVIÇOS) ao INC, entre os meses de janeiro de 2015 a fevereiro de 2016, tendo sido identificado um contrato, cujo objeto é a prestação de serviços de lavanderia, mais especificamente, o processamento de roupas e tecidos hospitalares nas instalações da UPA e Maternidade em Tabatinga, cujo valor fixo por mês era de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), conforme cláusula sexta do referido instrumento contratual. 12. Com vistas a comprovar o superfaturamento, a autoridade policial utilizou como paradigma o contrato nº 120/2014, cujo objeto seria o mesmo serviço prestado ao Hospital Dr. Fajardo, celebrado diretamente com a SUSAM (ID 182869553 - fls. 59/67), consoante Nota Técnica 2678/2016/REGIONAL/AM, cujo valor era de R$ 2,77 por quilo de roupa cobrado pela empresa contratada. Sucede que, no caso dos autos, o montante do contrato firmado com o INC era fixo, no importe de R$ 50.000,00, e não fazia referência à quantidade de roupa hospitalar lavada mensalmente, o que impede dita comparação de valores, já que diversos quanto à forma de execução. Embora conste da sentença que a quantidade mensal de roupa lavada seria de 1.800 kg, não há qualquer prova dessa informação nos autos, eis que sequer foi objeto do contrato, nem constou das notas fiscais emitidas pela prestação do serviço, muito menos foi apurada por perícia técnica. Frise-se, ainda, que nenhuma testemunha fez referência a esse quantitativo de roupa que era lavado mensalmente na UPA/Maternidade de Taguatinga. 13. Meras especulações quanto à quantidade de roupa hospitalar lavada por mês pela empresa ERHARD LANGE - ME (ITA SERVIÇOS) não têm o condão de comprovar o alegado superfaturamento objeto da denúncia. Em verdade, não se verifica, do exame atento dos autos, standard probatório condizente com juízo de certeza que exclua qualquer dúvida razoável quanto à materialidade delitiva. 14. O Ministério Público Federal deixou de apresentar elementos probatórios convincentes quanto à existência de superfaturamento no contrato de prestação de serviço de lavagem de roupa hospitalar firmado com a ERHARD LANGE - ME (ITA SERVIÇOS), para impor uma condenação, devendo-se aplicar ao caso o princípio in dubio pro reo. 15. O contexto fático probatório acima mencionado, aliado ao plexo normativo referente à matéria, impõe a absolvição da parte acusada quanto ao delito de peculato. 16. Pedido de suspensão do processo formulado pelo MPF indeferido. Apelação de M.M. desprovida. Apelação de E.L. parcialmente provida, para decretar a sua absolvição. Habeas corpus concedido de ofício, para estender a absolvição a M.M., J.N. e P.M. Apelação de J.N. prejudicada.
(TRF-1, ACR 0008140-65.2017.4.01.3200, DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ALVES DE SOUZA, TERCEIRA TURMA, PJe 27/07/2023 PAG PJe 27/07/2023 PAG)