AMBIENTAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EMPREENDIMENTO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. LICENÇA AMBIENTAL NULA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO.
RESOLUÇÃO CONAMA 303/2001. CONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO STF. REEXAME PROBATÓRIO VEDADO.
SÚMULA 7/STJ. DIREITO FUNDAMENTAL INDISPONÍVEL. HISTÓRICO DA DEMANDA 1. Cuida-se, na origem, de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra a Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente - FATMA - e Hantei Construções e Incorporações Ltda., com o objetivo de anular a Licença Ambiental Prévia 194/GELAU/06 e qualquer outra licença que tiver por lastro o imóvel discutido na Ação Civil Pública 2003.72.00.009574-2, pois o local do empreendimento
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...constitui ecossistema protegido, sendo ilegal o licenciamento.2. É de se destacar que se trata de empreendimento de luxo voltado para o público de alto poder aquisitivo, denominado "Águas do Santinho", localizado em área de Restinga - o ecossistema mais ameaçado do bioma Mata Atlântica.3. Ao que consta da petição inicial, a licença em tela foi concedida com base em parecer técnico preparado por servidores então investigados na Operação Moeda Verde, da Polícia Federal, na qual se apurou a ocorrência de crimes ambientais concernentes à compra e venda de licenças, formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva, entre outros. Registra-se que o mencionado Inquérito resultou em diversas condenações em primeira e segunda instâncias, inclusive de servidor público da FATMA.4. Primeiramente, convém salientar que já houve decisão do STJ no presente caso na qual se determinou que a Corte de origem suprisse as seguintes omissões reconhecidas: "1) as possibilidades de se usar como fundamento para decisão de mérito desta ACP, a decisão prolatada na ACP 2003.72.00.009574-2 que não transitou em julgado e que inovou na ordem jurídica, pois delimitou como APP extensão compreendida de 73m medidos a partir da preamar em direção ao continente; 2) à aplicação da Resolução Conama 303/2001 que determina como APP faixa mínima de trezentos metros, medidos a partir da linha de preamar máxima" (fl. 4717, e-STJ).5. Após a descida dos autos, o Tribunal Regional analisou os pontos e decidiu da seguinte forma (fls. 4.800-4.804, e-STJ): "Quanto ao primeiro ponto, é de se rejeitar a alegação do embargante, uma vez que não há vedação legal à adoção de outro pronunciamento judicial (ACP n.º 5011328-69.2010.404.7200) como razões de decidir, mormente se relacionado a demanda em tudo similar, ainda que não transitado em julgado. (...) Não há plausibilidade na tese de inconstitucionalidade/ilegalidade da Resolução n.º 303/2002 do CONAMA, por exorbitar o poder regulamentador do órgão que a editou.
Com efeito, o referido ato normativo nada mais fez do que conferir executoriedade à legislação ambiental, nos seus estritos limites (art. 84, inciso IV, da Constituição Federal). (...) A perícia realizada na área e vinculada à ACP n.º 5011328- 69.2010.404.7200/SC apurou que 'toda a área do imóvel em questão situa-se sobre ecossistema de restinga' (...) tendo consignado, o expert, que 'a área originalmente abrigava uma vegetação de restinga arbustiva' (..
) e 'a vegetação exerce uma decisiva função na fixação de dunas' (. ..) Ressalvou, por fim, que entendia como Área de Preservação Permanente a faixa de dunas frontais e a extensão de 300 m sobre terreno de restinga, perfazendo 81% do imóvel (...) é inafastável o reconhecimento de que o imóvel insere-se em área de preservação permanente, seja porque integra a faixa mínima de 300 metros, medidos a partir da linha de preamar máxima (art. 3º, inciso IX, alínea a, da Resolução n.º 303/2002-CONAMA), seja porque a área relativa à rampa de dissipação possui vegetação que cumpre função decisiva na manutenção da estabilidade (fixação) das dunas internas do cordão dunar Santinho-Ingleses (art. 3º, inciso IX, alínea b, da Resolução n.º 303/2002-CONAMA). Diante de tal constatação, deve ser reconhecida a nulidade da Licença Ambiental Prévia n.º 194/GELAU/06 e demais licenças expedidas pela FATMA, relativamente ao imóvel sub judice". AUSÊNCIA DE OMISSÕES 5.1. A suposta omissão quanto ao fato de o imóvel estar situado em área urbana amplamente consolidada não subsiste. O Tribunal regional fundou-se em diversos trechos da perícia ambiental realizada, a qual atestou que o empreendimento se situa inteiramente em área de preservação permanente, e apontou o prejuízo às vegetações nativas cruciais ao ecossistema local, rechaçando, assim a viabilidade jurídica de manutenção do imóvel.
5.2. Saliente-se, contudo, que, apesar de a Corte a quo ter se manifestado quanto à tese da consolidação da área urbana, percebe-se que ela somente foi aventada no Recurso Especial, e não foi, por óbvio, endereçada anteriormente à instância inferior, como se averigua tanto na Apelação (fls. 4.276-4.308, e-STJ) quanto no primeiro acórdão (fls. 4.476-4.486, e-STJ), configurando-se inovação recursal.
5.3. Outrossim, o Colegiado de origem rechaçou a tese de ilegalidade e inconstitucionalidade da Resolução CONAMA 303/2002, uma vez que a norma secundária apenas "conferiu executoriedade à legislação ambiental, nos seus estritos limites (art. 84, IV, da Constituição Federal) (fl. 4.801, e-STJ).
5.4. Diante disso, verifica-se, preliminarmente, que não houve ofensa ao art. 1.022 do CPC/2015. CONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO DO CONAMA. COMPETÊNCIA DO STF 6. Quanto ao mais, vê-se que a irresignação não comporta conhecimento. Ao dirimir a controvérsia, o Colegiado original, como mencionado anteriormente, entendeu, forte na jurisprudência do STJ, ser constitucional a aludida Resolução do CONAMA, com arrimo no art. 84, IV, da Constituição. A competência para ratificar a compatibilidade da norma com a Lei Maior é exclusiva do Supremo Tribunal Federal, motivo pelo qual não se pode conhecer da referida tese (art. 102, III, da CF). INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. REEXAME PROBATÓRIO VEDADO 7. Além disso, o argumento referente, em suma, à ausência de danos ambientais concretos e ao suposto respeito à área demarcada da APP, requer revolvimento probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula 7/STJ, como salientado pelo Parquet Federal. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 613/STJ. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA DO FATO CONSUMADO EM DIREITO AMBIENTAL. PRECEDENTES SIMILARES DA SEGUNDA TURMA DO STJ 8. Outrossim, ainda que fossem vencidos os óbices apontados, deve-se registrar que o simples fato de ter havido a consolidação da situação no tempo não torna menos ilegal o panorama em tela. Teoria do fato consumado em matéria ambiental equivale a perpetuar e a perenizar suposto direito de poluir, como se adquirido fosse, o que vai de encontro ao postulado constitucional do meio ambiente equilibrado como bem de uso comum do povo essencial à sadia qualidade de vida.9. O STJ já consagrou entendimento contrário ao pleito do recorrente sobre a Teoria do fato consumado em imóvel situado em área ambientalmente protegida: AgRg no REsp 1.497.346/MS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 27.11.2015; AgInt no REsp 1.389.613/MS. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 27.6.2017; AgRg no REsp 1.491.027/PB, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 20.10.2015; Resp 1.394.025/MS, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 18.10.2013; AgInt no REsp 1.381.085/MS, Ministro Og Fernandes, Segunda Turma. DJe 23.8.2017.10. Reforça-se o posicionamento pela edição da Súmula 613/STJ: "Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental".11. "Na espécie, não há um fato ocorrido antes da vigência do novo Código Florestal, a pretensão de realizar supressão da vegetação e, consequentemente, a referida supressão vieram a se materializar na égide do novo Código Florestal. Independentemente da área ter sido objeto de loteamento em 1979 e incluída no perímetro urbano em 1978, a mera declaração de propriedade não perfaz direito adquirido a menor patamar protetivo. Com efeito, o fato da aquisição e registro da propriedade ser anterior à vigência da norma ambiental não permite o exercício das faculdades da propriedade (usar, gozar, dispor, reaver) em descompasso com a legislação vigente. Não há que falar em um direito adquirido a menor patamar protetivo, mas sim no dever do proprietário ou possuidor de área degrada de tomar as medidas negativas ou positivas necessárias ao restabelecimento do equilíbrio ecológico local." (REsp 1.775.867/SP, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 23.5.2019, grifou-se).12. "Na origem, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul ajuizou ação civil pública ambiental contra Saffira - Sociedade dos Amigos da Fauna e da Flora de Iraí, com o objetivo de compelir a ré na obrigação de não fazer obras, em continuidade às já existentes, em imóvel situado em Área de Preservação Permanente - APP, onde não teriam sido devidamente observadas as regras ambientais pertinentes, bem como a demolir as edificações feitas na referida área, com a obrigação de reparar os danos já causados. (...) As Áreas de Preservação Permanente têm a função ambiental de preservar os diversos elementos da natureza essenciais à vida, no que sempre deve-se prestigiar sua recomposição in natura. O STJ, em casos idênticos, firmou entendimento no sentido de que, em tema de Direito Ambiental, não se admite a incidência da teoria do fato consumado.
Precedentes: AgInt no REsp 1572257/PR, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 17/05/2019; AgInt no REsp 1419098/MS, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 21/05/2018, AgRg nos EDcl no AREsp 611.701/RS, Rel. Ministro Olindo Menezes, Des. convocado do TRF 1ª Região, Primeira Turma, DJe 11/12/2015.
Nesse contexto, devidamente constatada a existência de edificações em área de preservação permanente, a demolição de todas aquelas que estejam em tal situação é medida que se impõe. (...)" (REsp 1.638.798/RS, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 13.12.2019, grifou-se).13. "No caso concreto, as instâncias ordinárias constataram que há edificações (casas de veraneio), inclusive com estradas de acesso, dentro de uma Área de Preservação Permanente, com supressão quase total da vegetação local. Constatada a degradação, deve-se proceder às medidas necessárias para recompor a área. As exceções legais a esse entendimento encontram-se previstas nos arts. 61-A a 65 do Código Florestal, não abrangendo a manutenção de casas de veraneio".
(AgRg no REsp 1.494.681/MS, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 16.11.2015, grifou-se).14. "(...) Sendo a licença espécie de ato administrativo autorizativo submetido ao regime jurídico administrativo, a sua nulidade implica que dela não pode advir efeitos válidos e tampouco a consolidação de qualquer direito adquirido (desde que não ultrapassado o prazo previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99, caso o beneficiário esteja de boa fé). Vale dizer, declarada a sua nulidade, a situação fática deve retornar ao estado ex ante, sem prejuízo de eventual reparação civil do lesado caso presentes os pressupostos necessários para tal. Essa circunstância se torna ainda mais acentuada tendo em vista o bem jurídico tutelado no caso em tela, que é o meio ambiente, e a obrigação assumida pelo Estado brasileiro em diversos compromissos internacionais de garantir o uso sustentável dos recursos naturais em favor das presentes e futuras gerações (...)". (REsp 1.362.456/MS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 28.6.2013, grifou-se).15. "Descabida a supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente - APP que não se enquadra nas hipóteses previstas no art. 8º do Código Florestal (utilidade pública, interesse social e baixo impacto ambiental). Conquanto não se possa conferir ao direito fundamental do meio ambiente equilibrado a característica de direito absoluto, certo é que ele se insere entre os direitos indisponíveis, devendo-se acentuar a imprescritibilidade de sua reparação, e a sua inalienabilidade, já que se trata de bem de uso comum do povo (art. 225, caput, da CF/1988). Em tema de direito ambiental, não se cogita em direito adquirido à devastação, nem se admite a incidência da teoria do fato consumado. Precedentes do STJ e STF. A proteção legal às áreas de preservação permanente não importa em vedação absoluta ao direito de propriedade e, por consequência, não resulta em hipótese de desapropriação, mas configura mera limitação administrativa. Precedente do STJ". (REsp 1.394.025/MS, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 18.10.2013, grifou-se).16. "Frise-se, ademais, não se admitir, notadamente em temas de Direito Ambiental, a incidência da Teoria do Fato Consumado para a manutenção de situação que, apesar do decurso do tempo, é danosa ao ecossistema e violadora das normas de proteção ambiental." (REsp 1.505.083/SC, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 10.12.2018).17. "Na forma da jurisprudência, 'o novo Código Florestal não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, tampouco para reduzir de tal modo e sem as necessárias compensações ambientais o patamar de proteção de ecossistemas frágeis ou espécies ameaçadas de extinção, a ponto de transgredir o limite constitucional intocável e intransponível da 'incumbência' do Estado de garantir a preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais (art. 225, § 1º, I)' (AgRg no REsp 1.434.797/PR, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 17/05/2016, DJe 07/06/2016)' (...) Estando o acórdão recorrido em dissonância com o entendimento atual e dominante desta Corte, deve ser mantida a decisão ora agravada, que deu provimento ao Recurso Especial do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, para restabelecer a sentença, que julgara parcialmente procedente a presente Ação Civil Pública. (AgInt no REsp 1.419.098/MS, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 21.5.2018, grifou-se). NULIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO ANTERIOR. RETORNO AO STATUS QUO ANTE 18. Como se não fosse suficiente, está expresso no acórdão atacado que foi reconhecida a nulidade da Licença Ambiental Prévia e demais licenças expedidas pelo órgão responsável relativamente ao imóvel em comento: "diante de tal constatação, deve ser reconhecida a nulidade da Licença Ambiental Prévia n° 194/GELAU/06 e demais licenças expedidas pela FATMA, relativamente ao imóvel sub judice" (fl. 4.804, e-STJ). Assim sendo, revogado o ato administrativo que lastreava o empreendimento, o status jurídico deve regressar ao ponto inicial, sobretudo quando se trata de direito fundamental tão caro e crucial para a vida humana, principalmente, mas também para todas as biotas. LEGALIDADE DO ART. 3°, IX, "A", DA RESOLUÇÃO CONAMA 303/2002 19. Ademais, em hipótese alguma se justificaria a declaração de ilegalidade do art. 3°, IX, "a", da Resolução CONAMA 303/2002, o qual dispõe: "constitui Área de Preservação Permanente a área situada nas restingas em faixa mínima de trezentos metros, medidos a partir da linha de preamar máxima".20. É cediço que o legislador nunca pretendeu esgotar todas as hipóteses de Áreas de Preservação Permanente no art. 2° da Lei 4.771/1965 (correspondente ao art. 4° da Lei 12.651/2012). A análise do dispositivo seguinte (art. 3°), vigente à época dos fatos subjacentes à causa, evidencia a possibilidade desse rol se estender, quando houver declaração por ato do Poder Público: "Art.
3º Consideram-se, ainda, de preservação permanentes, quando assim declaradas por ato do Poder Público, as florestas e demais formas de vegetação natural destinadas:a) a atenuar a erosão das terras; b) a fixar as dunas; c) a formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias; d) a auxiliar a defesa do território nacional a critério das autoridades militares; e) a proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico ou histórico; f) a asilar exemplares da fauna ou flora ameaçados de extinção; g) a manter o ambiente necessário à vida das populações silvícolas; h) a assegurar condições de bem-estar público."21. Por seu turno, o CONAMA, nos termos dos arts. 6°, II, e 8°, VII, da Lei 6.938/1981, é o órgão integrante do SISNAMA que possui abrangente competência para "estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos".22. Logo, considerando que o Código Florestal permitiu explicitamente ao Poder Público ampliar o âmbito de incidência das Áreas de Preservação Permanente para além dos exemplos do seu art. 2°, e que o CONAMA é o órgão técnico legalmente investido da competência para editar parâmetros de proteção do meio ambiente, a determinação infralegal do art. 3°, IX, "a", da Resolução 303/2002 está de acordo com o poder regulamentar outorgado pela lei. JURISPRUDÊNCIA DO STJ E DO STF SOBRE A LEGALIDADE DA RESOLUÇÃO EM QUESTÃO 23. Na jurisprudência dos Tribunais Superiores, é incontroversa a legitimidade da Resolução impugnada.24. Preliminarmente, convém ressaltar que o entendimento desta Turma, materializado em brilhante Voto condutor do Ministro Og Fernandes no REsp 1.546.415/SC, é de que "a proteção ao meio ambiente integra, axiologicamente, o ordenamento jurídico brasileiro, e as normas infraconstitucionais devem respeitar a teleologia da Constituição Federal. Dessa forma, o ordenamento jurídico precisa ser interpretado de forma sistêmica e harmônica, por meio da técnica da interpretação corretiva, conciliando os institutos em busca do interesse público primário" (REsp 1.546.415/SC, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe de 28.2.2019).25. Prosseguindo, o STJ possui, ao menos, três precedentes em que se sustenta a legalidade do dispositivo infralegal em epígrafe (REsp 994.881/SC, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe de 9.9.2009; REsp 1.462.208/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe de 6.4.2015; REsp 1.544.928/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 31.8.2020).26. Observo que o julgado do REsp 1.462.208/SC não "é inservível para assentarmos a legalidade da previsão infralegal". Naquela ocasião, o Voto condutor do eminente Min. Humberto Martins, acompanhado por unanimidade, já mencionava o art. 3° da Lei n° 4.771/1965 como fundamento legal da Resolução CONAMA n° 303/2002, fazendo importantes considerações sobre o tema central da presente causa: '(...) Alega o recorrente ilegalidade na regulamentação dada pela Resolução 303/02 do CONAMA, no que se refere às áreas de restinga, pois estaria fora do âmbito de sua competência. Para tanto, invoca excesso regulamentar e ofensa ao artigo 2º, alínea 'f', do Código Florestal. Em análise singular (REsp 992.462/MG) debrucei-me sobre a legislação que regula a matéria (arts. 8º, VII, da Lei n. 6.938/81, 2º da Lei 4.771/65 e 3º da Resolução n. 302/2002), e concluí ser tarefa permitida ao Poder Executivo dar boa aplicação à legislação ambiental. É bom lembrar que o próprio Código Florestal, no seu art. 3º, dá ao Poder Público (por meio de Decreto ou Resolução do Conama ou dos colegiados estaduais e municipais) a possibilidade de ampliar a proteção aos ecossistemas frágeis. Mais recentemente esta Corte enfrentou novamente o tema reafirmando possuir aquele órgão autorização legal para editar resoluções que visem à proteção do meio ambiente e dos recursos naturais, inclusive mediante a fixação de parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente'. (...)".27. No STF, quando do julgamento das ADPFs 747, 748 e 749, o Plenário determinou a restauração da vigência e eficácia das Resoluções CONAMA 284/2001, 302/2002 e 303/2002, e o fez por unanimidade, todos os Ministros acompanhando o Voto da Relatora, Ministra Rosa Weber, que, expressamente, reconheceu a constitucionalidade da Resolução CONAMA 303/2002, sem qualquer ressalva: "O conteúdo normativo veiculado na Resolução CONAMA nº 303/2002 é plenamente assimilável ao direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, titularizado por toda a coletividade e cuja defesa, preservação e restauração são deveres do Poder Público. Sua revogação, nesse contexto, distancia-se dos objetivos definidos no art. 225 da Constituição, tais como explicitados na Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981), baliza material da atividade normativa do CONAMA. Caracteriza-se como verdadeiro retrocesso relativamente à satisfação do dever de proteger e preservar o equilíbrio do meio ambiente".28. Nesse mesmo julgado, o STF adotou a orientação de que, por cuidar de matéria ambiental, o CONAMA detém amplos poderes normativos, sendo-lhe outorgada inclusive a faculdade de estipular parâmetros de proteção mais rígidos que o próprio Código Florestal:
"Ao fixar parâmetros mínimos de proteção de um direito fundamental, a Lei nº 12.651/2012 não impede que as autoridades administrativas ambientais, mediante avaliação técnica, prevejam critérios mais protetivos. O que não se pode é proteger de forma insuficiente ou sonegar completamente o dever de proteção. No modelo adotado pela Política Nacional do Meio Ambiente, estabelecidas pela legislação os parâmetros mínimos de proteção, às autoridades integrantes do SISNAMA, e notadamente ao CONAMA, compete, por expressa autorização legal (Lei nº 6.938/1981), a supressão de eventuais lacunas e a complementação da legislação de regência, respeitados (i) o conteúdo material da proteção constitucional, (ii) os patamares mínimos de proteção previstos em lei, (iii) imperativos de ordem técnica, (iv) a vedação da proteção insuficiente e (v) o dever de levar em consideração as necessidades das presentes e futuras gerações. Bem compreendida, a Lei nº 12.651/2012 apresenta condições mínimas de parametrização das áreas de preservação permanente. Não ostenta necessariamente, todavia, eficácia preemptiva de atividade normativa do órgão ambiental que, no exercício legítimo de competência outorgada pelo legislador, venha a impor, com base em critérios técnicos, controles mais rígidos." CONCEITO ECOLÓGICO DE RESTINGA E SUA PROTEÇÃO COMO APP 29. A declaração de ilegalidade do art. 3°, IX, "a", da Resolução 303/2002 pelo STJ extirparia a qualificação de APP da quase totalidade do que hoje se entende, ecológica e juridicamente, por Vegetação de Restinga. Assim, ficará facilitado o seu desmatamento, para que, no seu lugar, o proprietário possa fazer o uso que bem entender, com construções ou com a prática de outras atividades econômicas, hoje absolutamente vedadas.30. À luz do conjunto normativo complexo - que evolui com o próprio conhecimento sobre os ecossistemas incorporados no sentido atual do vocábulo, o natural dinamismo do Direito Ambiental e as necessidades crescentes de protegê-la -, a Restinga é caracterizada por um conjunto de traços identificadores: a) localização em depósito arenoso, praias, cordões arenosos, dunas, e depressões, que pode incluir, como forma de garantir a proteção do todo, também florestas de transição restinga-encosta; b) ocorrência em linha paralela à Costa, daí a influência marinha; c) povoamento por comunidades edáficas; d) cobertura vegetal em mosaico, estrato herbáceo, arbustivo e arbóreo, este último mais interiorizado. Onde essas características, entre outras, listadas pela legislação se fizerem presentes, de Restinga se cuidará para fins de proteção como APP.31. O atual Código Florestal especifica o regime de proteção das Áreas de Preservação Permanente e deixa explícita que a citada limitação administrativa incide sobre a vegetação nativa das restingas em seu art. 8º, § 1º. Indubitável que o novo Código Florestal deixou explícito aquilo que já se abstraía em interpretação sistemático-contextual do regime anterior: a vegetação nativa das restingas é sempre considerada Área de Preservação Permanente. IMPORTÂNCIA ECOLÓGICA DAS RESTINGAS 32. A compreensão protetiva da legislação ambiental deve sempre ter como base a função ecológica do bem ambiental tutelado. Desse modo, ao se cogitar reduzir a tutela jurídica das restingas, como se pretende com a declaração de ilegalidade do art. 3°, IX, "a", da Resolução 303/2002, não se pode ignorar que se trata do ecossistema mais ameaçado do bioma Mata Atlântica, que possui importantes funções ecológicas.33. As restingas estão inseridas em um ecossistema de transição entre mar e terra, contendor do avanço daquele sobre este. A vegetação costeira é imprescindível para fixação do solo e, assim, para a contenção do avanço marítimo. Em âmbito global, estima-se que tal tipo de vegetação é responsável por evitar anualmente que mais de 15 milhões de pessoas sejam impactadas por inundações.
Referências bibliográficas.34. Nota-se, ademais, que a degradação da cobertura florística resulta no deslocamento de quantidade maior de areia, pela ação dos ventos e do mar, modificando, dessarte, o desequilíbrio ecológico desse ecossistema, mediante transformação (criação, modificação ou supressão) artificial (relação causal da ação do homem) de dunas, lagoas, mangues, coberturas vegetais etc.35. As restingas são ainda abrigos fundamentais de diversas espécies de animais ameaçadas de extinção, como o rato-do-mato, a lagartixa de areia e a ave chorozinho-de-papo-preto. Referências bibliográficas.
36. Por fim, ressalta-se que tal ecossistema tem sido objeto de promissoras pesquisas de medicamentos e inseticidas. Referências bibliográficas.
37. Tudo isso conduz ao entendimento de que a diminuição da proteção das restingas não se revela oportuna. CONCLUSÃO 38. Recurso Especial parcialmente conhecido, somente quanto à tese de violação do
art. 1.022 do
CPC/2015, e, nesse ponto, não provido.
(STJ, REsp n. 1.814.091/SC, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 22/11/2022, DJe de 6/5/2024.)