PENAL E PROCESSO PENAL. OBTENÇÃO FRAUDULENTA DE FINANCIAMENTO EM INSTITUIÇÃO FINANCEIRA.
ARTIGO 19 DA
LEI N.º 7.492/1986. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA.
ARTIGO 383 DO
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. EMENDATIO LIBELLI. POSSIBILIDADE DO TRIBUNAL APLICAR ALUDIDO INSTITUTO.
ARTIGO 617 DO
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DECISÃO POSSÍVEL EM QUALQUER FASE DO PROCESSO. FUNDAMENTAÇÃO NECESSÁRIA AO CORRETO ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
1. Questão atinente à incompetência absoluta. Enfrentamento necessário em qualquer
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...fase processual.2. Em regra, o momento processual para que se proceda à adequação da capitulação jurídica do fato narrado na denúncia ao tipo penal previsto na lei é a prolação da sentença, ante a aplicação da emendatio libelli, nos termos do artigo 383 do Código de Processo Penal, que dispõe o juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave.3. Não há qualquer óbice ao poder do Tribunal em aplicar aludido instituto, nos termos do artigo 617 do Código de Processo Penal, permitindo ao julgador imiscuir-se na capitulação do delito, especialmente por implicar no reconhecimento de tema de ordem pública, a fim de evitar que a inadequada subsunção típica macule o instituto da competência. Permite-se, para tal consecução, inclusive, adentrar a fundamentação necessária ao correto enquadramento jurídico. Precedentes.4. O tipo penal delineado no artigo 19 da Lei n.º 7.492/1986 tutela bem intangível, que corresponde à credibilidade do próprio Sistema Financeiro, à proteção do investidor e do Mercado, desejando de fato constituir num instrumento para a proteção do Sistema Financeiro Nacional.5. Não resta dúvida de que o tipo excogitado (obtenção, mediante fraude, de financiamento em instituição financeira) nada mais difere do crime de estelionato comum a não ser pela qualidade de um dos sujeitos da operação creditícia. Trata-se de uma forma especial de estelionato.6. A prática do delito previsto na Lei n.º 7.492/1986, quando para a satisfação de uma necessidade qualquer de seu protagonista, atinge reflexamente o patrimônio alheio. Mas, daí entender que enseja o comprometimento do Sistema Financeiro Nacional como um todo seria consagrar interpretação que confere extrema cautela do legislador e uma desarrazoada subtração de competência.7. Para o efeito da legislação específica, tem-se entendido que financiamento significa a operação de crédito concedida com destinação específica, o que obriga a demonstração da aplicação de recursos, sendo que em se tratando de fraude perpetrada, em tese, para a suposta obtenção de financiamento perante instituição financeira, a competência para processamento e julgamento do delito é, em regra, da Justiça Federal.8. Nos termos da Circular de lavra do Banco Central do Brasil n.º 1.273, de 29.12.1987, empréstimos são as operações realizadas sem destinação específica ou vínculo à comprovação da aplicação dos recursos, sendo certo que os financiamentos são as operações realizadas com destinação específica, vinculadas à comprovação da aplicação dos recursos.9. Apesar de alguns julgados diferenciarem financiamento de empréstimo, este gênero do qual aquele configura espécie, caracterizado, o primeiro, pela finalidade empreendedora, isto é, a necessidade de subsidiar diversas atividades de fomento, certo é que para o suposto efeito de firmar a competência da Justiça Federal, aparentemente, não houve a análise sob o enfoque da natureza da operação e sua relevância frente ao Sistema Financeiro Nacional.10. Não obstante esta definição conceitual de financiamento trata-se, em hipóteses como a dos autos (financiamento para obtenção de materiais para construção - CONSTRUCARD), de mero contrato de empréstimo, o que não autoriza, em termos materiais, apesar da peculiaridade, o deslocamento de competência.11. O que deve nortear a interpretação não é meramente a qualidade de um dos sujeitos da relação negocial, ou seja, inserir-se no rol das instituições financeiras ou a estas equiparadas (artigo 1º da Lei n.º 7.492/1986), tampouco o fato de os recursos servirem para a aquisição de um determinado bem, mas, tão-somente, a natureza efetiva da operação e sua relevância para o Sistema Financeiro Nacional.12. Não há perfeita subsunção de fatos à norma do artigo 19 da Lei 7.492/1986, quando houver financiamento perante instituição financeira, a despeito de possuir alguma destinação específica e vinculação dos recursos, na hipótese, por exemplo, de inexistir uma orquestração hábil a abalar a higidez do Sistema Financeiro Nacional.13. A interpretação não poderia enveredar por conclusão que apenas levasse em conta a distinção entre empréstimo e financiamento, e assim concluir esta última modalidade como sendo de competência federal.14. Os contratos firmados para o financiamento de um bem móvel possuem a nítida natureza de contrato de caráter privado, cabendo ao Poder Público, tão-somente, a fiscalização e a adequação normativa, uma atividade de regulação que visa à proteção e defesa do consumidor, evitando que haja práticas abusivas por parte de instituições bancárias. Inserem-se no campo das relações de consumo, o que força as instituições financeiras a evitarem a imposição de obrigações excessivamente onerosas, reconhecendo-se a vulnerabilidade do consumidor.15. Não caberia proteção desnecessária às instituições financeiras, com a inclusão de tal modalidade de contratação na definição do tipo de colarinho branco, até pelo fato de, em várias hipóteses, elas próprias concederem, por interpostas pessoas (um terceiro, uma concessionária ou empresa comercial), tais financiamentos a pessoas sem condições financeiras para honrar suas dívidas, ou que comprometam significativamente os vencimentos percebidos, ou mesmo a indivíduos desconhecidos ou sequer objeto de uma verificação da capacidade econômica mais detida, tamanha é a certeza do ganho com a atividade desenvolvida, que encontra lastro nas próprias e extensas garantias previstas, cujas eventuais inadimplências, normalmente, são compensadas apenas com as taxas elevadas de remuneração do crédito concedido.16. Está-se diante de uma atividade de caráter essencialmente privado, um serviço prestado por instituição financeira ao mercado de consumo, mediante remuneração, com cobertura mais que suficientemente garantida, o que faz incidir a regra do artigo 3º, parágrafo 2º, da Lei n.º 8.078, de 11.09.1990 (Código de Defesa do Consumidor), considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (ADIN n.º 2591, em 07.06.2006).17. Parece que não seria defensável que um mero ato jurídico básico que retrate com fidelidade as relações entre a moeda e o crédito, típico contrato de empréstimo de coisa fungível, ainda que vinculado a um determinado bem, fosse atingir o Sistema Financeiro Nacional em sua integralidade. Não se vislumbra sequer risco potencial a este.18. O artigo 19 da Lei nº. 7.492/1986 somente pode possuir efetividade quando a fraude ao contrato de financiamento implicar numa orquestração relevante, atingindo ou não mais de uma instituição financeira, ou na hipótese de financiamento de vários bens visando à atividade de fomento mercantil.19. Por considerar que os fatos configuram, em tese, delito de estelionato (art. 171 do CP), mas não crime contra o Sistema Financeiro Nacional, voto preliminar do Relator para, de ofício, anular a sentença e encaminhar o feito a uma das Varas Federais Criminais de São Paulo/SP, nos termos do parágrafo 2º do artigo 383 e primeira parte do artigo 70, ambos do Código de Processo Penal.20. Na hipótese de ficar vencido no voto preliminar, prosseguindo no mérito, a despeito de a materialidade delitiva ter sido demonstrada nos autos, não há provas suficientes no sentido de que o apelante (...) tenha efetivamente concorrido para a prática da infração penal (tentativa do crime estampado no artigo 19, § único, da Lei n.º 7.492/1986 - primeira acusação formulada na denúncia). Provimento da Apelação do réu.21. O Ministério Público Federal não se desincumbiu do ônus previsto no artigo 156 do Código de Processo Penal, culminando as teses do órgão acusador em meras conjecturas a respeito da prática do delito consubstanciado no artigo 19, § único, da Lei n.º 7.492/1986, c.c. o artigo 14, II, do CP, por parte de (...), razão pela qual deve ser absolvido apenas quanto a esta primeira acusação, remanescendo a segunda acusação (não objeto de insurgência) descrita no aditamento da denúncia a que fora condenado (artigo 19, § único, da Lei n.º 7.492/1986).22. Em razão da absolvição quanto ao crime tentado, afasta-se, como consequência lógica, o disposto no artigo 71 do Código de Processo Penal, remanescendo a condenação de (...), pela prática do crime estampado no artigo 19, § único, da Lei n.º 7.492/1986 (forma consumada - segunda acusação disposta no aditamento da denúncia), resultando em uma pena definitiva de 02 (dois) anos e 08 (oito) meses de reclusão, bem como ao pagamento de 20 (vinte) dias-multa.23. Fica mantido o regime inicial aberto de cumprimento da pena, nos termos do artigo 33, § 1º, "c", do Código Penal.24. Impossibilidade de estabelecer regime mais gravoso de cumprimento de pena, na hipótese de descumprimento injustificado das penas restritivas de direitos que foram estabelecidas. Os corréus (...) tiveram fixado o regime inicial aberto de cumprimento da pena, nos termos do artigo 33, § 2º, "c", do Código Penal, de modo que, na hipótese de descumprimento injustificado da restrição imposta, a conversão (
art. 44,
§ 4º, do
CP) se faria, em princípio, pelo mesmo regime estabelecido na sentença, qual seja o regime aberto.
25. A análise e sua conversão há que ser realizada perante o juízo da execução, devendo ser dado provimento ao recurso da defesa de ambos os réus, tão somente para afastar a determinação de que, na hipótese da conversão da pena restritiva de direito, o cumprimento seja realizado por meio do regime semiaberto. No mais, fica mantida a sentença a quo.
26. Parcial provimento da Apelação da defesa dos réus.
(TRF 3ª Região, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, Ap. - APELAÇÃO CRIMINAL - 63757 - 0010207-71.2010.4.03.6181, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS, julgado em 26/03/2019, e-DJF3 Judicial 1 DATA:05/04/2019 )