Decisão
Trata-se de Recurso Extraordinário, interposto pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, em face de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do referido ente federativo (Doc. 1).
Na origem,
(...), Deputado Estadual, ajuizou Representação de Inconstitucionalidade, alegando que o Decreto Estadual 45.874/2016, expedido pela Chefia do Poder Executivo local, não poderia regulamentar diretamente o
art. 76-A do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT da Constituição Federal, incluído pela EC 93/2016.
Por meio do aludido Decreto, o Governador intentou a desvinculação de verbas
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...alocadas a Fundos previstos na Constituição do Estado.
Tais normas exibem a seguinte redação:
ADCT, Art. 76-A. São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023, 30% (trinta por cento) das receitas dos Estados e do Distrito Federal relativas a impostos, taxas e multas, já instituídos ou que vierem a ser criados até a
referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais, e outras receitas correntes.
Parágrafo único. Excetuam-se da desvinculação de que trata o caput:
I - recursos destinados ao financiamento das ações e serviços públicos de saúde e à manutenção e desenvolvimento do ensino de que tratam, respectivamente, os incisos II e III do § 2º do art. 198 e o art. 212 da Constituição Federal;
II - receitas que pertencem aos Municípios decorrentes de transferências previstas na Constituição Federal;
III - receitas de contribuições previdenciárias e de assistência à saúde dos servidores;
IV - demais transferências obrigatórias e voluntárias entre entes da Federação com destinação especificada em lei; (Incluído dada pela Emenda constitucional nº 93, de 2016) Produção de efeitos
V - fundos instituídos pelo Poder Judiciário, pelos Tribunais de Contas, pelo Ministério Público, pelas Defensorias Públicas e pelas Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal.
Por sua vez, o Decreto Estadual 45.874/2016, dispõe:
DECRETO Nº 45.874, DE 28 DE DEZEMBRO DE 2016. DISPÕE SOBRE A REGULAMENTAÇÃO DO DISPOSTO NA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 93, DE 08 DE SETEMBRO DE 2016, QUE ESTABELECE A DESVINCULAÇÃO DE RECEITAS DOS ESTADOS, DISTRITO FEDERAL E MUNICÍPIO.
O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, tendo em vista o disposto na Emenda Constitucional nº 93, de 08 de setembro de 2016, que desvinculou parte das receitas dos Estados relativas a impostos,
taxas e multas, já instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais, e outras receitas correntes, e tendo em vista o que consta do processo nº E-04/053/56/2016,
CONSIDERANDO:
que o Art. 3º da Emenda Constitucional nº 93 estabeleceu que os efeitos da desvinculação retroagissem a 1º de janeiro de 2016;
o art. 332 da Constituição Estadual e a Emenda Constitucional Estadual nº 32, de 09 de dezembro de 2003, que dispõe sobre o índice mínimo a ser aplicado na Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ;
o que estabelece no inciso I do art. 263, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, alterado pela Emenda Constitucional Estadual nº 31, de 21 de agosto de 2003 que dispõe sobre o índice mínimo a ser aplicado no Fundo Estadual de Conservação
Ambiental e Desenvolvimento Urbano - FECAM;
a Lei Estadual nº 5.149, de 10 de dezembro 2007, que destinou 10%, no mínimo, dos recursos arrecadados pelo FECP ao Fundo de Habitação de Interesse Social - FEHIS, e, - a Lei nº 1.650, de 16 de maio de 1990, que instituiu o Fundo de Administração
Fazendária - FAF,
DECRETA:
Art. 1º - As aplicações ou repasses mínimos a serem efetuados pelo Estado a FAPERJ, ao FECAM, ao FEHIS e ao FAF, terão suas respectivas bases de cálculo reduzidas nos 30% (trinta por cento) correspondentes a DRE.
§ 1° - Respeitado o Parágrafo Único do Art. 76-A da Emenda Constitucional nº 93, a redução se dará sobre impostos, taxas e multas, já instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais, e
outras receitas correntes, arrecadadas a partir de 1º de janeiro de 2016.
§ 2° - A Secretaria de Estado de Fazenda - SEFAZ e a Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão -SEPLAG farão os procedimentos necessários à realocação do orçamento desvinculado em função do presente Decreto.
Art. 2º - As demais desvinculações que alcancem receitas de órgãos ou entidades do Poder Executivo, não citadas neste Decreto, terão suas regulamentações estabelecidas a partir de 1º de janeiro de 2017.
Art. 3º - Este Decreto entrará em vigor na data de sua publicação. (grifos nossos)
Os fundamentos aduzidos pelo Parlamentar, autor da Representação, foram assim sintetizados no voto condutor do aresto:
Em que pese a menção equivocada a alguns dispositivos do texto constitucional, depreende-se da narração que o fundamento do pleito declaratório de inconstitucionalidade é a afronta ao princípio da separação dos poderes, inscrito no artigo 7º, ao
princípio da hierarquia das espécies normativas e à regra que veda a edição de decretos autônomos, prevista nos artigos 6º e 145, inciso IV, e às disposições constitucionais que versam sobre os repasses à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ e ao Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano - FECAM, constantes, respectivamente, dos artigos 332 e 263, § 1º, todos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.
Ao apreciar a lide, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro julgou procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade do Decreto em questão, por vislumbrar violação ao princípio da separação dos poderes, ao devido processo
legislativo, bem como ao artigo 76-A, do ADCT.
Entendeu que o Poder Executivo Estadual, ao decidir, sem a devida deliberação legislativa, quais os fundos seriam afetados pela desvinculação de receitas e quais os valores seriam contingenciados, usurpou a competência atribuída ao legislador local,
pela EC 93/2016, para decidir sobre a matéria.
O acórdão recebeu a seguinte ementa (Doc. 2):
Direito Constitucional. Representação por Inconstitucionalidade tendo por objeto o Decreto nº 45.874, de 28 de dezembro de 2016, do Estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre a regulamentação do disposto na Emenda Constitucional nº 93 de 06 de
setembro de 2016, que estabelece a desvinculação de receitas dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Preliminar de inépcia da inicial por ausência de fundamentação adequada. Descabimento de controle abstrato de constitucionalidade de ato desprovido
de autonomia. Rejeição das preliminares. Violação aos artigos 6º, 7º, 39, 77, caput, 145, inciso IV, 261, 263, § 1º, 306 e 332, todos da Carta Fluminense, incorrendo a norma impugnada em flagrante vício de inconstitucionalidade formal e material.
Procedência da Representação.
Opostos embargos de declaração pelo Estado do Rio de Janeiro, foram desprovidos (Doc. 6).
Irresignado, o Estado interpôs Recurso Extraordinário (Doc. 5), com amparo no art. 102, III, a, da Constituição Federal, em que sustenta ter o aresto ofendido o artigo 76-A do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, introduzido pela EC
93/2016.
Aponta, ainda, violação aos princípios da separação dos poderes, da supremacia da Constituição Federal, do pacto federativo, e dos dispositivos atinentes às competências privativas do Chefe do Executivo, que são normas constitucionais de repetição
obrigatória para os Estados (fl. 5, Doc. 5).
Para tanto, argumenta que:
a) a ação ajuizada na origem é incabível, porque (i) impugna ato de efeitos concretos, cuja eficácia já se exauriu no tempo, haja vista que o Decreto contestado estabeleceu a desvinculação de receitas apenas para o exercício de 2016; e (ii) não há
ofensa direta à Constituição do Estado, na medida em que o recorrente aponta que a norma infralegal infringiu leis estaduais instituidoras da Fundação de Habitação de Interesse Social e a Fundação de Administração Fazendária; (fl. 14, Doc. 5);
b) o art. 76-A, introduzido pela EC 93/2016, provê uma autorização aos entes federativos que se sobrepõe às normas previstas em suas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas, tendo em vista a supremacia da Constituição Federal (fl. 6, Doc. 5).
Assim, os fundos estaduais objeto do Decreto 45.874/2016, criados por meio de leis ordinárias ou pela Constituição Estadual, subordinam-se à Carta Magna (fl. 30, Doc. 5);
c) a EC 93/2016 desvinculou os recursos orçamentários de forma plena e autoaplicável; assim, submeter a Emenda Constitucional 93/2016 ao alvedrio do Legislativo Estadual esvaziaria a supremacia da Constituição Federal, e, em última análise,
ameaçaria o pacto federativo, por desbordar da autonomia estadual (fl. 4, Vol. 5);
d) a invalidação do Decreto impõe o remanejamento de recursos na ordem de R$ 500 milhões, para reconstituição dos fundos de forma retroativa, criando obrigação inexequível por ultrapassar a reserva do possível do orçamento do Estado; cria, ainda,
grave situação de insegurança jurídica, na medida em que o Executivo fluminense não pode se furtar de dar fiel cumprimento à Emenda Constitucional nº 93/2016, em razão da vinculação positiva à lei (fl. 4, Doc. 5);
e) acolher o pedido prejudicaria o novo art. 76-A do ADCT, além de permitir a ingerência do Poder Legislativo sobre a competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo em gerir o orçamento e de exercer a direção superior da administração pública na
definição de ajustes fiscais e das prioridades de gastos do governo, o que evidenciaria um verdadeiro descompasso no sistema de freios e contrapesos (fls. 19-20, Doc. 5);
f) outros Estados e Municípios brasileiros já desvincularam as receitas dos seus fundos por meio de Decreto. Cita, como exemplo, o Estado de São Paulo (Decreto 62.274/2016); de Santa Catarina (Decreto 1.459/2018); Paraná (Decreto 5.158/2016);
Rondônia (Decreto 23.115/2018); Municípios de São Paulo (Decreto 57.380/2016); de Belo Horizonte (Decreto 16.437/2016); e de Salvador (Decreto 28.230/2016). Sublinha, ainda, que, no Pará e em Pernambuco, sequer houve edição de Decretos, tendo sido
efetivada automaticamente a desvinculação na gestão orçamentária, com base na EC 93/2016;
g) o acórdão recorrido ofendeu, ainda, as prerrogativas do Chefe do Executivo (arts. 84, II, e 165, § 3º, da CF/88), cuja função típica administrativa compreende a própria gestão e execução orçamentária, a qual se submete apenas aos limites fixados
pela lei orçamentária emanada do Legislativo, que é mera autorização para realização do gasto (fl. 27. Doc. 5); e
h) a Constituição Estadual não poderia vincular receitas orçamentárias aos fundos por ela criados, quais sejam Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano (FECAM) (art. 263), e a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio Janeiro (FAPERJ) (art. 332), sob pena de usurpar a competência do Chefe do Executivo para a inciativa da lei orçamentária anual (art. 165, III, da CF/88). Desse modo, o próprio parâmetro do controle concentrado do Decreto atacado, qual
seja, a Constituição Estadual, revela-se inservível em razão de sua própria inconstitucionalidade;
Em contrarrazões, (...) sustentou, em preliminar, a falta de legitimidade do Governador do Estado para recorrer, argumentando que a capacidade de ser parte que lhe é conferida pelo art. 103, V, da Constituição não o autoriza a
postular em juízo sem advogado.
Asseverou que o Tribunal de origem não detém competência para julgamento da causa, uma vez que o recorrente fundamentou seu pedido indicando contrariedade ao
art. 102,
I, a, da
Constituição.
No mérito, requereu o desprovimento do recurso, com a manutenção do acórdão recorrido que assentou ter o Decreto 45.874/2016 violado à Constituição do Estado do Rio de Janeiro.
O Governador do Estado requereu a concessão do efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário, o que lhe foi indeferido pela Terceira Vice-Presidência do Tribunal de origem (Doc. 8).
Contra essa decisão, foi interposto agravo regimental (Doc. 10).
Em juízo de admissibilidade, o Tribunal de origem não conheceu do agravo regimental, tendo, todavia, admitido o Recurso Extraordinário, (Doc. 12).
É o relatório.
(STF, RE 1244992, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, Decisão Monocrática, Julgado em: 16/12/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 31/01/2020 PUBLIC 03/02/2020)