A crise causada pela pandemia da COVID-19 tem influenciado inúmeras reflexões jurídicas que vão além da área da saúde.
Os impactos econômicos tem causado uma série de efeitos colaterais, até então incalculáveis. Dentre as quais, encontra-se uma preocupação latente sobre a obrigação de prestar alimentos.
Diante do quadro de desemprego, suspensão de contrato de trabalho, diminuição salarial, ou mesmo suspensão total de qualquer renda, como o devedor deverá agir em relação a pensão alimentícia?
Será possível suspender o pagamento dos alimentos e não sofrer as conseqüências pela inadimplência?
Primeiramente é preciso responder que a obrigação da pensão não pode ser suspensa unilateralmente, seja por qual motivo for.
É preciso, antes de qualquer conduta, fazer uma análise mais profunda de como é possível rever a obrigação alimentar nesse contexto de excepcional desorganização econômica, uma vez que não pode se deixar de lado o direito constitucional daqueles que necessitam da pensão para sobreviver.
DO DIREITO AOS ALIMENTOS
O direito de receber alimentos é amplamente amparo pela legislação brasileira e está relacionado com os direitos constitucionais à vida e à preservação da dignidade da pessoa humana. Isto porque, os alimentos se destinam à sobrevivência daquele que os necessita, tutelado pela família e pelo Estado em face de sua incapacidade de manter-se sozinho.
Razão pela qual, o Código Civil estende esta obrigação a toda família:
Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
Assim, quando alguém não tem condições de prover seu próprio sustento e, com isso, ter uma vida digna (sobreviver), nasce para ele o direito de receber alimentos de um terceiro, que terá o dever de prestá-los, conforme disciplina o Código Civil:
Art. 1.695. São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento.
A partir dessas considerações, isto é, presunção de necessidade do alimentando e do caráter personalíssimo da obrigação de pagar alimentos, conclui-se que o encargo é irrenunciável e não pode o devedor ser dispensado do encargo, nem mesmo por motivo de desemprego ou superioridade da capacidade financeira do outro genitor, salvo as permissões legais.
DO BINÔMIO: NECESSIDADE X POSSIBILIDADE
Na fixação dos alimentos é imprescindível o respeito ao binômio necessidade x possibilidade, regra esta estabelecida pelo igualmente Código Civil:
Art. 1.694 (...) § 1º Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.
De acordo com essa regra, no momento da fixação da prestação alimentícia é necessário existência da proporcionalidade entre a necessidade do alimentado e a possibilidade financeira do alimentante, considerando as necessidades básicas do alimentado e tmabémnão pode inviabilizar o sustento próprio do alimentante, que usa a mesma fonte de renda para ambas as obrigações.
Por fim, em relação aos filhos de pais separados, há também que ser observada a proporcionalidade diante da capacidade financeira dos genitores na avaliação do montante da pensão alimentícia, já que, sendo de ambos o dever de criação e sustento dos filhos, cada um deve contribuir na proporção das suas possibilidades econômicas. Como diz o jargão, "quem pode mais paga mais, quem pode menos paga menos". Nesse sentido é a redação do Código Civil:
Art. 1.703. Para a manutenção dos filhos, os cônjuges separados judicialmente contribuirão na proporção de seus recursos.
Verificados os aspectos do direito aos alimentos, cabe agora analisar a teoria da imprevisão sob a ótica dos alimentos, no atual contexto da pandemia do COVID-19.
DA TEORIA DA IMPREVISÃO
A teoria da imprevisão prevê que certos contratos possam ser rescindidos, caso a prestação por uma das partes se torne excessivamente onerosa, em razão de acontecimentos imprevistos e extraordinários, resultando em vantagem exagerada em favor do credor, configurando assim uma situação de desequilíbrio da relação jurídica, como estabelecido no artigo 478 do Código Civil:
Como exceção ao princípio do cumprimento obrigatório dos contratos (pacta sunt servanda), a teoria da imprevisão, ou da onerosidade excessiva, representa a possibilidade de um reajuste das obrigações estabelecidas nos contratos de execução continuada, de modo a restabelecer o equilíbrio contratual anterior.
Assim, para que seja configurada a prestação desproporcional devido a fatos supervenientes e imprevisíveis, é obrigatória a verificação conjunta dos seguintes elementos:
(i) contrato de execução continuada;
(ii) acontecimentos extraordinários e imprevisíveis;
(iii) prestação excessivamente onerosa para uma das partes;
(iv) extrema vantagem para a outra.
Com isso, interessante avaliar se é aplicável às ações de alimentos.
Da (in)aplicabilidade da Teoria da Imprevisão na obrigação alimentícia
Na ação de alimentos existe a chamada relativização da coisa julgada, uma vez que, por lei, há o impedimento do trânsito em julgado da sentença condenatória que fixa a verba alimentar, estabelecida no artigo 15, da Lei de Alimentos (Lei nº 5.478/68):
Art. 15. A decisão judicial sobre alimentos não transita em julgado e pode a qualquer tempo ser revista, em face da modificação da situação financeira dos interessados.
No Código Civil, a possibilidade dessa revisão está consignada no artigo 1.699, um dispositivo que afasta a coisa julgada e prevê a alteração da sentença que fixou os alimentos em razão da mudança na situação financeira, seja do alimentado, seja do alimentante:
Art. 1.699. Se, fixados os alimentos, sobrevier mudança na situação financeira de quem os supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao juiz, conforme as circunstâncias, exoneração, redução ou majoração do encargo.
Diante disso, a possibilidade de revisão da pensão alimentícia não tem relação com os requisitos contidos na Teoria da Imprevisão, extraídos do artigo 478 do Código Civil, quais sejam: onerosidade excessiva do devedor e vantagem exagerada do credor.
A previsão do artigo 1.699 não exige os requisitos de onerosidade de um lado e nem de enriquecimento do outro, mas somente a mudança do quadro fático que motivou o valor fixado, vale dizer, a modificação no binômio possibilidade x necessidade, transgredindo assim o princípio da proporcionalidade.
O caráter revisional dos alimentos é devido ao fato da pensão alimentícia ser uma obrigação de valor, porque seu objetivo é atender uma necessidade básica, pouco importando o valor em moeda que isso possa representar para a sua satisfação.
Definitivamente, os alimentos visam atender as necessidades de sobrevida de quem os necessita (um valor), razão pela qual as decisões sobre essa matéria trazem implícita a cláusula rebus sit stantibus (enquanto as coisas estão assim) e não estão engessadas pela coisa julgada.
DOS ALIMENTOS EM TEMPOS DE PANDEMIA
Por mais que os alimentos sejam indispensáveis à sobrevivência daqueles que os necessitam e um dever irrenunciável de quem deve prestá-los, em certas situações tanto o devedor quanto o credor pode exigir a revisão desse encargo.
Como visto acima, o Código Civil determina que, em havendo alteração da situação financeira do devedor ou do credor, a pensão alimentícia poderá ser reduzida, majorada ou até extinta, levando-se em conta, contudo, o caso concreto. Ou seja, a regra é a quebra do desequilíbrio entre necessidade do alimentado e das possibilidades do alimentante.
A crise provocada pela pandemia do novo coronavírus afeta negativamente a vida econômica de milhares famílias que, sem emprego ou diminuição salarial, vêm enfrentando sérias dificuldades em manter o próprio sustento, afetando tanto aquele que recebe alimentos, quanto o que paga.
Em vista disso, surgem muitas dúvidas a respeito da possibilidade de suspender ou aumentar o valor da pensão enquanto perdurar a crise.
DA (IM)POSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO DO PAGAMENTO DOS ALIMENTOS
Inicialmente, é importante lembrar que o desemprego, por si só, não é motivo que justifique a ausência ou a suspensão unilateral do pagamento da pensão alimentícia. Contudo, a situação de crise é excepcional e o assunto merece ser analisado com muita atenção.
A não contribuição de qualquer valor, ainda que in natura, pode ser prejudicial àqueles que dela necessitam para sobreviver, principalmente aos filhos. Quem é obrigado a pagar alimentos, mas se encontra em sérias dificuldades financeiras por causa dos efeitos bruscos da pandemia, deverá procurar meios menos danosos de solucionar o problema, sobretudo aos alimentados e buscar a sua revisão.
Portanto, antes de qualquer conduta, o ingresso de uma ação revisional de alimentos é medida imediata, sob pena de sofrer graves ações coercitivas.
Por outro lado, cabe lembrar que aquele que detém a guarda igualmente pode sofrer com os efeitos da pandemia, desequilibrando a divisão de deveres entre os genitores, motivando da mesma forma uma revisional para majorar os alimentos.
Indubitavelmente, o Judiciário já está enfrentando essa questão, tendo em vista a necessidade de ingresso de ação revisional de alimentos por aqueles que estão obrigados, por decisões judiciais, e pretendem reduzi-los ou majorá-los, considerando a situação da pandemia e suas consequências.
Além do abalo na situação financeira, como destacado (que deve ser comprovada), o pedido de revisão dos alimentos também se fundamenta nos dispositivos legais abaixo:
Lei nº 5.478/68 (Lei de Alimentos), no seu artigo 15, que estabelece a revisão da decisão judicial de alimentos, "em face da modificação da situação financeira dos interessados";
Artigo 1.695, do Código Civil, estabelecendo o dever de prestar alimentos por quem tem condições para isso, porém "sem desfalque do necessário ao seu sustento";
Artigo 505, inciso I, do Código de Processo Civil, que trata da revisão das decisões judiciais quando na "... relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito....".
Em tempos de pandemia temos, de um lado, a sociedade, num todo, está sendo impactada pelos efeitos da crise financeira, e de outro, o interesse daqueles que recebem apenas o indispensável para a sua subsistência.
A solução para essa questão está em buscar um denominador comum que possibilite a continuação dos pagamentos dos alimentos, sem inviabilizar a capacidade de sustento do próprio do alimentante.
Sobre o tema, veja um modelo de Revisional de Alimentos para minorar alimentos e uma revisional para majorar os alimentos.
DA MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA GUARDA
Outro assunto que ganha especial importância nessa fase é sobre a manutenção da guarda e regulação da visitação por parte dos pais.
Sobre o tema, inúmeros são os questionamentos acerca da possibilidade de alteração da guarda ou alteração da visitas em face dos riscos envolvidos. No mesmo sentido dos alimentos, o Código Civil permite a revisão de uma decisão que fixa a guarda ou regulamenta as visitas, sempre que visar atender o interesse do menor envolvido:
Nesse sentido é a previsão do Art. 1.586 do Código Civil:
Art. 1.586. Havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos antecedentes a situação deles para com os pais.
Com base nesse artigo, diante de motivos que alterem as circunstâncias que ampararam a decisão, ela pode ser alterada por meio de um pedido de modulação dos efeitos da guarda.
Para tanto é indispensável a comprovação da alteração do quadro fático e, primordialmente, evidenciar o interesse das crianças envolvidas.