APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. SISTEMA VIPERCONSIG. COLETA, ARMAZENAMENTO E DISPONIBILIZAÇÃO NÃO AUTORIZADOS DE DADOS PESSOAIS DE CONSUMIDORES. VIOLAÇÃO À INTIMIDADE E À PRIVACIDADE. TUTELAS REPARATÓRIA E INIBITÓRIA. CONDENAÇÃO GENÉRICA À REPARAÇÃO DOS DANOS MATERIAIS E MORAIS. DANO MORAL COLETIVO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. 1. CABIMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Nos termos do
art. 81,
parágrafo único, do
CDC, é possível a defesa coletiva dos consumidores quanto se tratar de interesses ou direitos individuais homogêneos,
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...assim entendidos os decorrentes de origem comum. Conforme dicção do art. 82, I, do CDC, o Ministério Público goza de legitimidade para propor ação coletiva de consumo.2. INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. TUTELA DA INTIMIDADE E DA PRIVACIDADE. Extrai-se da interpretação conjunta dos arts. 2º, 17 e 29 do CDC que as disposições constantes do microssistema protetivo do consumidor aplicam-se não só ao consumidor standard, destinatário final fático e econômico dos produtos e serviços disponibilizados no mercado de consumo, mas também ao consumidor por equiparação. A incidência das regras previstas no CDC está pautada pelos princípios previstos no art. 4º e que norteiam a Política Nacional das Relações de Consumo, dentre os quais o reconhecimento da vulnerabilidade e da proteção do consumidor e da repressão eficiente de práticas abusivas. Da mesma forma, deve-se ter em vista a necessidade de resguardo dos direitos elementares previstos no art. 6º do CDC, especialmente a proteção da vida, da saúde e da segurança do consumidor, a proteção contra práticas comerciais e contratuais abusivas e a efetiva prevenção e reparação dos danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos. Sabido que a inviolabilidade da intimidade e da privacidade constitui garantia fundamental assegurada pelo art. 5º, X, da CF/88 e pelo art. 21 do CC a todo os cidadãos brasileiros. Como consequência, não podem ser toleradas práticas comerciais e contratuais, tampouco a comercialização de produtos e serviços, que violem direitos elementares do consumidor, e afrontem ditas garantias. Práticas dessa natureza, por não observarem o dever de segurança previsto no art. 8 do CDC, impõem ao fornecedor o dever de reparar os danos materiais e morais, seja a título individual, seja a título coletivo, conforme dicção dos arts. 12 e 14 do mesmo diploma legal.3. TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS. COLETA, ARMAZENAMENTO E DIVULGAÇÃO. NECESSIDADE DE CONSENTIMENTO DO TITULAR. VIOLAÇÃO À INTIMIDADE E À PRIVACIDADE. A proteção da intimidade e da privacidade em relação à coleta, ao armazenamento e à disponibilização de dados e informações pessoais pela internet é tutelada pela Lei nº 12.414/2011, conhecida como a Lei do Cadastro Positivo, pela Lei nº 12.965/2014, que instituiu o Marco Civil da Internet, e pela Lei nº 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Como regra, a utilização da internet, bem como o tratamento de dados e a criação de bancos de dados, devem levar em consideração os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, dentre os quais a inviolabilidade da intimidade, razão pela qual necessário prévio e expresso consentimento do seu titular. Tratando-se de informações relacionadas ao histórico de crédito de pessoas físicas e jurídicas, os arts. 4º e 9º da Lei nº 12.414/2011 e os arts. 7º e 8º do Decreto nº 9.936/2019 condicionam a disponibilização pública a consulentes e a outros gestores de bancos de dados à autorização expressa do cadastrado. 4. CASO CONCRETO. Os elementos de convicção que aportaram aos autos demonstram que o sistema VIPERCONSIG, desenvolvido e comercializado pelos apelantes a correspondentes bancários, não constitui mera ferramenta de cálculo para permitir a aferição da margem disponível para contratação de empréstimos consignados. Cuida-se, na realidade, de banco de dados no qual são armazenadas informações relacionadas à renda e à existência de empréstimos consignados de consumidores pensionistas do INSS, sem o necessário e prévio conhecimento dos respectivos titulares. Não bastasse a irregularidade relativa à coleta e ao armazenamento, a instrução processual também evidenciou que o aludido sistema disponibiliza, sem o conhecimento e consentimento do consumidor, as referidas informações a todos os correspondentes bancários que contratem os serviços da apelada. Situação em que evidenciado o tratamento irregular de dados de informações protegidas por sigilo, e, como consequência, a violação à intimidade do consumidor. 5. DANO MORAL COLETIVO. REDUÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. A prevenção e a reparação dos danos morais coletivos foram expressamente tuteladas pelo art. 6º, VI, do CDC. Conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça o "dano moral coletivo é categoria autônoma de dano que não se identifica com aqueles tradicionais atributos da pessoa humana (dor, sofrimento ou abalo psíquico), mas com a violação injusta e intolerável de valores fundamentais titularizados pela coletividade (grupos, classes ou categorias de pessoas). Tem a função de: a) proporcionar uma reparação indireta à lesão de um direito extrapatrimonial da coletividade; b) sancionar o ofensor; e c) inibir condutas ofensivas a esses direitos transindividuais" (REsp n. 1.586.515/RS). Na hipótese, a coleta, o armazenamento e a comercialização de dados sem o prévio e expresso consentimento dos seus titulares, constitui conduta comercial inescrupulosa que evidencia o desrespeito a padrões mínimos de ética exigido pela sociedade nas relações comerciais. Ferramenta que, para além do tratamento irregular de dados pessoais, fomenta o assédio a consumidores e a concessão de empréstimos em desacordo com as regras do CDC que impõem o dever de conceder crédito de forma responsável como forma de evitar o superendividamento do consumidor. Situação em que a indenização arbitrada na sentença se revela condizente com a gravidade e a repercussão do ilícito perpetrado. APELAÇÃO CÍVEL DESPROVIDA.
(TJ-RS; Apelação Cível, Nº 50379226420198210001, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mylene Maria Michel, Julgado em: 21-06-2024)