A digitalização das relações humanas e econômicas transformou radicalmente o modo como os indivíduos acumulam, administram e transmitem seu patrimônio. Em meio a essa realidade, emergiu uma nova categoria de bens jurídicos, o patrimônio digital, composto por ativos e direitos armazenados em ambientes eletrônicos, como contas bancárias virtuais, criptomoedas, arquivos em nuvem, redes sociais, canais de conteúdo e contratos eletrônicos.
Com o aumento da relevância desses ativos, a morte do titular passou a suscitar um problema jurídico inédito: como identificar, acessar e partilhar bens digitais protegidos por senha ou por políticas de privacidade das plataformas?
A ausência de legislação específica sobre a herança digital levou o Poder Judiciário a buscar soluções interpretativas que conciliem o direito sucessório tradicional com a proteção constitucional da intimidade e da vida privada.
Foi nesse contexto que recente decisão do STJ, sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi, proferiu decisão paradigmática no julgamento do REsp 2.124.424, estabelecendo parâmetros inéditos para o tratamento jurídico dos bens digitais no processo de inventário.
A decisão do STJ e a criação do "incidente de identificação, classificação e avaliação de bens digitais"
O caso chegou ao STJ após uma das inventariantes requerer acesso ao conteúdo de aparelhos eletrônicos das vítimas, por meio de ofício direcionado à Apple. O pedido foi negado sob o fundamento de que tal medida poderia violar a intimidade do falecido e de terceiros.
Diante do impasse, a Ministra Nancy Andrighi propôs uma solução intermediária, fundada na analogia com outros institutos processuais: a criação de um incidente processual autônomo, apensado ao inventário principal, denominado "incidente de identificação, classificação e avaliação de bens digitais".
Segundo o entendimento da relatora, esse incidente deve ser instaurado e conduzido pelo juiz do inventário, permitindo o acesso aos dispositivos eletrônicos mediante a atuação de um profissional técnico especializado — o inventariante digital. Esse profissional teria a função de examinar o conteúdo dos aparelhos, identificar os bens digitais com valor patrimonial e preservar as informações que envolvam direitos da personalidade.
A proposta busca equilibrar dois valores constitucionais relevantes:
(i) o direito dos herdeiros à herança, previsto no artigo 5º, inciso XXX, da Constituição Federal, e
(ii) a proteção da intimidade, vida privada e imagem do falecido e de terceiros, assegurada pelos incisos X e V do mesmo artigo.
O conceito e a função do inventariante digital
A figura do inventariante digital surge como uma inovação prática e conceitual no âmbito do direito sucessório contemporâneo. Trata-se de um profissional especializado em tecnologia da informação (ou eventualmente perito nomeado pelo juízo) responsável por acessar e analisar os dispositivos eletrônicos do falecido com segurança técnica e observância dos limites legais e éticos.
Suas atribuições compreendem:
-
Acesso autorizado judicialmente a celulares, computadores, contas em nuvem, carteiras digitais e demais plataformas;
-
Identificação e classificação dos bens digitais, distinguindo aqueles de valor patrimonial dos que têm caráter pessoal ou íntimo;
-
Avaliação dos ativos transmissíveis, como criptomoedas, saldos de carteiras digitais, direitos autorais de conteúdo, domínios virtuais, entre outros;
-
Elaboração de relatório técnico a ser juntado aos autos do inventário, descrevendo os bens identificados e sugerindo providências quanto à partilha.
Essa função técnica tem o objetivo de conciliar a efetividade da sucessão patrimonial com a tutela dos direitos da personalidade, evitando que os herdeiros tenham acesso indiscriminado a dados privados e preservando o equilíbrio entre transparência patrimonial e respeito à memória do falecido.
Esta figura pode igualmente ser indicada no Testamento, não sendo preciso esperar a abertura de um inventário para que se proceda com o acesso.
O patrimônio digital e sua natureza jurídica
O patrimônio digital compreende o conjunto de bens e direitos economicamente apreciáveis existentes no ambiente eletrônico. Pode ser dividido em duas categorias principais:
Bens digitais com valor econômico direto
-
Criptomoedas, tokens e NFTs.
-
Saldos em carteiras virtuais (PayPal, Mercado Pago, Nubank, etc.).
-
Contas em plataformas de investimento digital ou fintechs.
-
Receitas provenientes de monetização (YouTube, Twitch, Spotify, OnlyFans etc.).
-
Créditos acumulados em programas de milhas ou fidelidade.
-
-
Bens digitais com valor intelectual
-
Domínios de sites, blogs, e-commerces.
-
Canais, perfis e páginas com audiência consolidada.
-
Obras digitais (fotos, vídeos, textos, músicas, softwares, designs).
-
Direitos autorais e royalties de obras publicadas online.
-
-
Bens digitais de valor afetivo ou pessoal
-
Perfis em redes sociais (Facebook, Instagram, LinkedIn, etc.).
-
E-mails e mensagens armazenadas.
-
Arquivos em nuvem (Google Drive, iCloud, Dropbox).
-
Fotografias, registros familiares e históricos pessoais digitais.
-
-
Obrigações e passivos digitais
-
Assinaturas e contratos eletrônicos (streaming, softwares, armazenamento).
-
Dívidas vinculadas a contas digitais ou plataformas financeiras.
-
A distinção é crucial, pois apenas os bens dotados de valor econômico são transmissíveis aos herdeiros, nos termos do artigo 1.784 do Código Civil. Já os bens de natureza pessoal ou ligados à intimidade do falecido não se transmitem, por envolverem direitos personalíssimos, intransmissíveis e irrenunciáveis.
Fundamento jurídico do incidente e sua natureza processual
A solução proposta pelo STJ se ancora no princípio da instrumentalidade processual e na interpretação analógica de institutos existentes no Código de Processo Civil de 2015.
Embora o CPC não contemple expressamente o incidente de inventário digital, há respaldo jurídico na possibilidade de criação de incidentes processuais acessórios (art. 139, VI, e art. 294, parágrafo único, CPC) destinados a assegurar a efetividade da tutela jurisdicional.
O incidente, apensado ao inventário, não cria um novo processo autônomo, mas funciona como uma "aba" dentro dos autos principais, voltada exclusivamente à apuração e delimitação dos bens digitais. Trata-se, portanto, de uma medida de natureza técnico-jurisdicional, sujeita ao controle do juiz e às garantias do contraditório e da ampla defesa.
A ausência de legislação e o papel da jurisprudência
A decisão do STJ evidencia o vácuo legislativo existente em matéria de sucessão digital no Brasil. Embora tramitando no Congresso Nacional, projetos de lei como o PL 3.050/2020 e o PL 6.468/2019 ainda não foram aprovados, deixando a regulamentação do tema a cargo da doutrina e da jurisprudência.
Nesse cenário, o entendimento da Corte Superior atua como paradigma interpretativo para os juízes e operadores do direito, oferecendo uma solução equilibrada e tecnicamente viável até que o legislador discipline de modo específico o acesso e a partilha dos bens digitais.
A decisão da Terceira Turma também reafirma a importância da interpretação conforme a Constituição, ao harmonizar o direito sucessório (art. 5º, XXX) com a tutela dos direitos da personalidade (art. 5º, X), evitando tanto o esvaziamento da herança quanto a violação da intimidade post mortem.
Desafios práticos e perspectivas futuras
Entre os principais desafios identificados, destacam-se:
-
A definição de critérios técnicos para a atuação do inventariante digital e a garantia da cadeia de custódia dos dados;
-
O custo da perícia digital, que poderá ser elevado em casos complexos;
-
A necessidade de cooperação das plataformas e provedores de tecnologia, observadas as normas de proteção de dados (Lei nº 13.709/2018 - LGPD);
-
A elaboração de normas deontológicas e processuais específicas, que delimitem o alcance e a responsabilidade do inventariante digital.
A médio prazo, espera-se que a experiência jurisprudencial conduza à positivação da herança digital no ordenamento brasileiro, incorporando dispositivos que tratem expressamente da transmissão de ativos digitais, senhas e direitos virtuais, em consonância com a realidade tecnológica e com os princípios do direito civil contemporâneo.
Consideraçòes finais
O surgimento do inventariante digital representa um marco na evolução do direito sucessório e processual brasileiro. A decisão do STJ, ao propor o incidente de identificação e avaliação de bens digitais, oferece uma resposta pragmática e constitucionalmente adequada ao desafio de compatibilizar a sucessão hereditária com a proteção da privacidade digital.
Mais do que uma inovação procedimental, o incidente reforça a necessidade de uma visão interdisciplinar do direito, que una os saberes jurídicos e tecnológicos em prol da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana, inclusive após a morte.
Enquanto o legislador não se pronuncia, a jurisprudência cumpre seu papel de preencher lacunas normativas com soluções técnicas e principiológicas, garantindo que o patrimônio digital seja tratado com a mesma seriedade e cuidado conferidos aos bens tradicionais.
Sobre o tema, veja um modelo de incidente de identificação, classificação e avaliação de bens digitais.