PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DANO AO ERÁRIO. IMPUTAÇÃO DA PRÁTICA DE ATOS DE IMPROBIDADE PREVISTOS NO
ART. 10 DA
LEI 8.429/92. SUPERVENIÊNCIA DA
LEI 14.230/2021. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DO DOLO DO AGENTE. PRELIMINARES DE NULIDADE E CARÊNCIA DA AÇÃO. AFASTAMENTO. MÉRITO. AUSÊNCIA DE PROVA CABAL DO ELEMENTO SUBJETIVO DOLOSO. ABSOLVIÇÃO. PROVIMENTO DOS APELOS.
1. Apelações cíveis interpostas em face de sentença que julgou parcialmente procedente ação de improbidade administrativa, por entender configurados atos ímprobos causadores de lesão ao erário.
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... Reconhecimento pelo juízo de primeiro grau da prescrição dos fatos em relação a empresa ré, que restou condenada tão somente ao ressarcimento dos danos suportados pelo erário em decorrência do ato ímprobo verificado na execução de um dos convênios objeto da ação de improbidade. Condenação do réu ex-gestor municipal pela prática de atos ímprobos causadores de lesão ao erário, que teriam ocorrido em três diferentes convênios firmados entre o Município de Independência/CE e o DNOCS. 3. PRELIMINARES
3.1. Superveniência da edição da lei 14.230/2021. Reconhecimento da prescrição intercorrente.
3.1.1. A Suprema Corte, em julgamento submetido à sistemática da repercussão geral (ARE 843.989), fixou a tese de que a norma benéfica da Lei 14.230/2021 é, em regra, irretroativa, excetuada as hipóteses de atos culposos de improbidade, praticados na vigência do texto anterior da lei e sem condenação transitada em julgado. Impossibilidade de reconhecimento da prescrição intercorrente. Necessidade de confirmação, no caso concreto, da existência de prova suficiente do dolo, isto é, da má-fé dos agentes, tendo em vista a retroatividade da nova redação do art. 10 da Lei 8.429/1992, que não mais prevê o elemento subjetivo culpa como justificativa suficiente para a condenação por ato de improbidade administrativa.
3.2. Nulidade da sentença. Não indicação do dispositivo legal transgredido e ausência de análise quanto à presença do elemento subjetivo necessário à configuração dos atos ímprobos.
3.2.1. Prevalece no Código de Processo Civil a ideia de que o reconhecimento da nulidade de determinado ato processual exige, não apenas que o ato tenha sido praticado em desacordo com a lei, mas que gere prejuízo à parte ou ao desenvolvimento do processo, por não haver alcançado a sua finalidade. Hipótese em que o magistrado de primeiro grau, ao proferir a sentença, ainda que de forma sucinta, descreveu as condutas atribuídas a cada recorrente, tendo mencionado, de forma expressa, cuidar-se todas de hipóteses que causaram lesão ao erário. Anotou, ainda, que o art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa pune os atos ímprobos praticados com dolo ou culpa, como de fato ocorria quando proferida a sentença condenatória, antes da edição da Lei 14.230/2021.
3.2.2. Caso concreto em que o magistrado de primeiro grau aplicou a norma jurídica prevista no art. 10 da Lei 8.429/1992 a um determinado conjunto de fatos. Se não indicou de forma expressa os incisos nos quais enquadradas as condutas dos agentes, daí não advém mínimo prejuízo às partes ou ao desenvolvimento do processo, uma vez que suficientemente explicitadas nos fundamentos de fato as hipóteses que ensejaram o reconhecimento da prática de atos de improbidade administrativa, tendo o magistrado constatado, em todos os casos, a liberação de verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes, conduta tipificada no inciso XI do art. 10 da Lei 8.429/1992. Presença dos elementos essenciais da sentença, previstos no art. 489 do Código de Processo Civil, não havendo que se cogitar de ausência de fundamentação, porquanto analisadas pelo juízo de primeiro grau as questões de fato e de direito, com a subsunção do fato concreto à norma jurídica aplicável.
3.2.3. A presença do elemento subjetivo necessário à configuração dos atos ímprobos atribuídos aos recorrentes é matéria que diz respeito ao mérito da apelação, não cabendo o seu exame em sede preliminar.
3.3. Nulidade da sentença por deficiência de fundamentação. Não enfrentamento de tese defensiva no sentido de que a administração municipal adotava um modelo desconcentrado na época em que executados os convênios.
3.3.1. Hipótese em que a sentença, de forma expressa, afirma ser o apelante, então Prefeito do Município de Independência/CE, o responsável, em todos os casos analisados, pelo recebimento da obra pública e determinação de seu pagamento. Não há que se cogitar do não enfrentamento de matéria de defesa, eis que, a toda evidência, o magistrado de primeiro grau acolheu tese contrária à alegação da parte, no sentido de que o apelante seria o responsável direto pelos atos ímprobos em análise. Não acolhimento de preliminar.
3.4. Carência da ação. Não promoção de prévia medida cautelar prevista no art. 16 da Lei 8.429/1992. Tese de que a propositura da ação de improbidade administrativa condiciona-se ao indispensável ajuizamento de anterior medida cautelar de sequestro.
3.4.1. A ação de improbidade administrativa, para ser manejada, não necessita do prévio ajuizamento de medida cautelar de indisponibilidade de bens, instrumento que serve à garantia da recomposição do erário ou do acréscimo patrimonial resultante de eventual enriquecimento ilícito. A mera leitura dos dispositivos legais pertinentes é o que basta para concluir pelo não acolhimento da preliminar, uma vez que o ajuizamento da ação de improbidade não está condicionado à prévia formulação de pedido de indisponibilidade de bens, o que pode ser feito em caráter incidental, quando já proposta a ação principal, ou até não ser feito de forma cautelar, aguardando-se o resultado final da demanda.
3.5. Falta do interesse de agir do Ministério Público Federal. Impossibilidade de os agentes políticos responderem, a um só tempo, por improbidade administrativa, com fundamento na Lei 8.429/1992, e por crime de responsabilidade, previsto no art. 201/1967.
3.5.1. A matéria foi resolvida pelo Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2019, quando, ao apreciar o tema 576 da repercussão geral, fixou a seguinte tese: "O processo e julgamento de prefeito municipal por crime de responsabilidade (Decreto-lei 201/67) não impede sua responsabilização por atos de improbidade administrativa previstos na Lei 8.429/1992, em virtude da autonomia das instâncias".
3.6. Nulidade de sentença. Inobservância do art. 289 do Código de Processo Civil. Alegação de desrespeito à ordem de apreciação dos pedidos - principal e subsidiário - formulados na inicial.
3.6.1. A aplicação das sanções previstas no art. 12 da Lei 8.429/1992 pressupõe o reconhecimento da prática de ato ímprobo, o que ocorreu no caso concreto, tendo o magistrado concluído que os atos de improbidade praticados pelos réus causaram lesão ao erário, correspondendo à hipótese prevista no art. 10 da Lei 8.429/1992, que justifica a imposição das sanções previstas no inciso II art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa. Ausência de inversão quanto à análise da materialidade do ato de improbidade e aplicação da sanção correspondente.
3.6.2. Longe de se tratar da hipótese de formulação de pedidos principal e subsidiário, o autor da demanda, em verdade, formulou pedido cumulativo, de condenação dos réus nas sanções estabelecidas no art. 12, incisos II e III, da Lei 8.429/1992, tendo sido atendida a sua pretensão apenas parcialmente, já que condenados os réus tão somente nas sanções previstas no art. 12, inciso II, da Lei 8.429/1992.
3.7. Nulidade. Incongruência entre o pedido formulado na inicial e o resultado da demanda. Sentença ultra petita. Condenação da empresa apelante ao ressarcimento dos danos causados pela má construção do açude objeto do Convênio PGE n.º 197/2001, que não integraria o pedido formulado na inicial.
3.7.1. A inicial é clara ao atribuir à empresa apelante a execução deficiente do objeto do Convênio PGE 197/2001, no valor de R$ 143.000,00 (cento e quarenta e três mil reais), o que teria culminado com o rompimento da parede do açude comunitário, em virtude da má compactação do solo, gerando prejuízo ao erário. Narrativa que está de acordo com o pedido formulado na parte final da petição inicial, de condenação dos réus nas sanções estabelecidas no art. 12, incisos II e III, da Lei 8.429/1992.
3.7.2. Se o Ministério Público Federal, ao requerer a indisponibilidade de bens da empresa em montante suficiente para satisfazer os efeitos de eventual condenação, atribuiu a ela a responsabilidade tão somente pelo montante de R$ 131.524,90 (cento e trinta e um mil, quinhentos e vinte e quatro reais e noventa centavos), em virtude de irregularidades havidas em convênio diverso, da qual foi posteriormente absolvida, tal não passou de erro material, facilmente perceptível e passível de correção, sem possibilidade de limitar a abrangência do pedido formulado na ação principal.
3.7.3. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça há muito consolidou o entendimento segundo o qual não configura julgamento ultra ou extra petita o provimento jurisdicional exarado nos limites do pedido, o qual deve ser interpretado lógica e sistematicamente a partir de toda a petição inicial, e não apenas de sua parte final. Precedentes.
MÉRITO. 4. Insuficiência de prova do elemento subjetivo doloso. Retroatividade da Lei 14.230/2021 para alcançar fatos pretéritos, ainda sem trânsito em julgado. Tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento submetido à sistemática da repercussão geral.
4.1. A prova existente nos autos, embora suficiente para atestar a existência do prejuízos, não demonstra um agir intencional e consciente por parte dos réus, eivado de má-fé, voltado a ocasionar desvio de recursos ou perda patrimonial ao erário. A própria fundamentação exposta na sentença corrobora essa conclusão, na medida em o magistrado não definiu, em nenhum dos casos concretos analisados, se a conduta do réus teria sido praticada com dolo ou culpa.
4.2. Hipótese em que a parede do açude comunitário objeto do convênio PGE 197/2001 teria sido rompida em razão de uma enxurrada, tendo em vista a má compactação do solo. Embora o prejuízo ao erário seja evidente, não há elementos suficientes nos autos para atestar, de forma cabal, a presença do dolo da empresa contratada para a execução da obra, ou do gestor municipal responsável pela liberação da verba pública. Não sendo mais admissível o elemento subjetivo culpa como justificativa suficiente para a condenação por ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário, há que se reconhecer a insuficiência das provas existentes nos autos para embasar uma condenação.
4.3. No que respeita ao Convênio 153/2001, observa-se nos autos que a obra foi recebida por Engenheiro Civil, o qual, após visita ao local, atestou a conclusão da passagem molhada na localidade de Várzea do Toco (Riacho Santa (...)) e a compatibilidade com o projeto aprovado pelo DNOCS. Diante do atestado emitido por engenheiro que se responsabilizou pela qualidade técnica dos serviços, o fato de ter o então prefeito ratificado o recebimento, mediante carimbo e assinatura lançada no documento, não é suficiente para demonstrar a presença do dolo necessário à configuração do ato ímprobo, consistente na liberação de verba para o pagamento de obra má executada, que necessitou ser demolida. Reconhecimento pelo juízo de primeiro grau de que a empresa ré nos autos da ação de improbidade administrativa não foi a responsável pela execução da obra.
4.4. No que concerne ao Convênio 155/2001, embora alguns serviços não tenham sido executados pela empresa contratada, do qual se destaca o sangradouro, construído por um mutirão da comunidade, vê-se que o valor não executado seria de apenas R$ 5.027,51 (cinco mil e vinte e sete reais e cinquenta e um centavos), frente a um contrato no valor total de R$72.699.08 (setenta e dois mil seiscentos e noventa e nove reais e oito centavos). Além disso, todos os documentos relativos ao procedimento licitatório e contrato firmado com a empresa responsável pela execução da obra foram subscritos pelo então Secretário de Desenvolvimento Econômico do Município de Independência/CE e não pelo prefeito. Tudo somado, conclui-se pela ausência de prova cabal de que tenha o gestor municipal atuado com má-fé, ao determinar a liberação da verba pública no caso. Afinal, a mera atribuição ao prefeito do dever de supervisão hierárquica da execução do objeto do convênio, decorrente da posição de gestor da municipalidade, não é suficiente à demonstração da má-fé do agente, isto é, da intenção de alcançar o resultado ilícito tipificado na
lei de improbidade administrativa, sendo necessário que outras circunstâncias evidenciem o elemento subjetivo necessário ao reconhecimento da prática de ato ímprobo.
5. Não configuração de ato ímprobo tipificado no
art. 10 da
Lei 8.492/1992, em razão da ausência de prova cabal do dolo dos agentes.
6. Apelações providas.
[mcbp]
(TRF-5, PROCESSO: 00027667320094058103, APELAÇÃO CÍVEL, DESEMBARGADOR FEDERAL RUBENS DE MENDONÇA CANUTO NETO, 4ª TURMA, JULGAMENTO: 24/01/2023)