HABEAS CORPUS. AÇÃO PENAL.
ARTIGOS 4º, “CAPUT”, 6º E
10 DA
LEI N.º 7.492/1986. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA PELO JUÍZO A QUO. NÃO OCORRÊNCIA DE INÉPCIA DA PEÇA VESTIBULAR NO QUE TANGE AOS ATOS DE GESTÃO FRAUDULENTA. DISTINÇÃO DA OBJETIVIDADE JURÍDICA DE CADA UM DOS DELITOS IRROGADOS NA EXORDIAL INCOATIVA. SENTENÇA QUE VENHA A SER PROFERIDA DEVERÁ SE VOLTAR TAMBÉM À PERQUIRIÇÃO SE SE PODERIA CONSIDERAR A CONSUNÇÃO ENTRE CADA UM DOS TIPOS PENAIS. SÓ SERIA POSSÍVEL O TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL SE SE DIVISASSE DE PLANO E SEM NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA A COMPLETA AUSÊNCIA DE PROVA DE MATERIALIDADE DELITIVA, DE INDÍCIOS DE AUTORIA E ATIPICIDADE DA CONDUTA OU AINDA
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...A PRESENÇA DE ALGUMA CAUSA CONFIGURADORA DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE, O QUE NÃO SE VERIFICA NA HIPÓTESE. ORDEM DENEGADA.
A denúncia contida nos autos subjacentes a este Habeas Corpus descreve em tese atos de gestão fraudulenta (além de ter sido imputado os tipos dos artigos 6º e 10, ambos da Lei n.º 7.492/1986) do ora paciente, sendo certo que caberá, oportunamente, após a instrução processual, a apreciação da absorção ou não dos delitos previstos nos artigos 6º e 10 do referido diploma legal pelo delito de gestão fraudulenta.
Do que se pode denotar da denúncia é a narrativa de supostas irregularidades na boa condução da gestão da instituição financeira pelo paciente, mediante a simulação de valorização de investimento em empresa controlada para reduzir prejuízo contábil, colocando em grave risco terceiros e a própria instituição financeira, permitindo tal descrição o exercício da ampla defesa. Ademais, a inicial acusatória descreveu a autoria do paciente (...) CALÓ em razão da condução da instituição financeira nas operações e que seriam configuradoras da materialidade delitiva, tendo se respaldado não só no Relatório do Banco Central que apontou sua condição de Diretor Estatutário do BANCO MÁXIMA S.A e detentor de 10% de suas ações, mas também nos demais elementos probatórios coligidos na fase inquisitorial, os quais demonstrariam o seu poder de mando na condução das atividades enquanto Diretor Jurídico/Contábil, tomando decisões supostamente espúrias que teriam orientado os rumos da instituição financeira, no período de novembro de 2014 a março de 2016.
Descreve a denúncia que o paciente teria atuado em desacordo com os princípios e as normas de boa gestão e lealdade em função das práticas de simulação de valorização de investimento em empresa controlada (FC-(...) Promotora de Vendas S.A.) para reduzir prejuízo contábil do BANCO MÁXIMA S.A. Tais ações teriam resultado na publicação de demonstrações financeiras e na apresentação de informações ao Banco Central que não refletiam com fidedignidade a real situação econômico-financeira da instituição, com assunção de riscos incompatíveis com a sua estrutura de capital e prestação de informações incorretas àquela autarquia, de forma intencional e sistemática, para dissimular sua grave insuficiência de capital. Além disso, a denúncia descreve que no período de janeiro de 2015 a março de 2016 o BANCO MÁXIMA S.A., na pessoa do paciente e de outros, teria assumido riscos muito superiores àqueles compatíveis com a sua estrutura de capital, apresentando informações incorretas referentes à apuração do requerimento de capital para cobertura de suas exposições patrimoniais ao risco de crédito, risco de mercado e risco operacional, de forma a dissimular um quadro de grave insuficiência de capital.
Paciente que não se tratava efetivamente de sócio minoritário. Ele atuava na administração da instituição financeira juntamente com o corréu (...), tanto que assinou documentos enviados ao Bacen para prestação das informações requeridas, participou de diversas assembleias gerais extraordinárias nas quais eram aprovados os demonstrativos contábeis e assinou suas atas, integrou comitê de crédito do banco, responsável pela análise acerca das concessões de crédito, além de ter sido apontado como um dos responsáveis na comunicação de indícios de crime enviada pelo departamento de supervisão bancária do Bacen ao Ministério Público Federal.
A Lei n.º 6.404, de 15.12.1976, que dispôs sobre as sociedades por ações, prescreve os deveres e responsabilidades dos administradores no exercício de suas funções (dever de diligência, de lealdade, de informar e responsabilidade – artigos 153 e seguintes), visando a proteção dos investidores e do próprio Sistema Financeiro Nacional.
A par das sanções administrativas previstas pelo descumprimento do dever de lealdade na condução da instituição, em tendo sido o paciente (...) CALÓ denunciado pelo Ministério Público Federal por atos que seriam configuradores em tese de crime de gestão fraudulenta (além dos artigos 6º e 10, ambos da Lei n.º 7.492/1986), na condição de Diretor Jurídico/Contábil do BANCO MÁXIMA S.A à época dos fatos, deve se submeter também ao processo judicial validamente instaurado para apuração de condutas que configurariam os crimes descritos na denúncia.
Foram descritas na denúncia condutas que, para além do artigo 4º, caput, da Lei n.º 7.492/1986, amoldam-se, em tese, aos crimes tipificados nos artigos 6º e 10, ambos da lei excogitada. Todavia, eventual consunção entre tais artigos e o de gestão fraudulenta, que possui pena mais grave, só poderá ser objeto de deliberação após a instrução probatória por ocasião do ato de sentenciamento do feito, levando-se em consideração a objetividade jurídica de cada um dos tipos, o elemento anímico e as provas produzidas que ensejarão, ou não, a condenação do paciente.
A objetividade jurídica do tipo de gestão fraudulenta exige que “haja a utilização de ardil ou de astúcia, imbricada com a má-fé, no intuito de dissimular o real objetivo de um ato ou negócio jurídico, cujo propósito seja o de ludibriar as autoridades monetárias ou mesmo aquelas com quem mantém eventual relação jurídica. A má-fé, nesse contexto, é elemento essencial para a configuração da fraude” (Habeas Corpus n.º 285.587/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 15.03.2016, DJe de 28.03.2016).
O bem jurídico do tipo previsto no artigo 6° da Lei n° 7.492/1986 “pretende resguardar a confiança inerente às relações jurídicas e negociais existentes entre os agentes em atuação no sistema financeiro (sócios das instituições financeiras, investidores e os órgãos públicos que atuam na fiscalização do mercado), protegendo-os, ainda, contra potenciais prejuízos decorrentes da omissão ou prestação de informações falsas acerca das operações financeiras. Na forma omissiva o sujeito ativo, através de informação falsa ou da omissão de informação verdadeira, induz a erro o sujeito passivo fazendo com que represente de maneira equivocada ou até mesmo ignore a realidade. Na forma comissiva por omissão, o autor deve se revestir da posição de garante, ou seja, deve possuir o dever de revelar a informação adequada” (TRF/2 - ACR n.° 2000.51.01.509117-8, Rel. Des. Fed. Sergio Schwaitzer, 6ª T., vu, DJU 15.02.2005). O legislador intentou assegurar ao “sócio, investidor ou à repartição pública competente” o acesso às informações acerca dos aspectos operacionais e financeiros da instituição financeira, fazendo-se necessária a presença da vontade livre e consciente do agente de praticar o tipo objetivo. O bem jurídico dirige-se, pois, “ao perigo que representa para a solidez material e moral do sistema financeiro, existente no descontrole das autoridades, o qual deriva da sonegação ou da falsidade de informações sobre a situação financeira de instituições financeiras ou sobre determinada operação realizada, que se comunicadas fidedigna e integralmente, e a tempo, à autoridade central, poderiam ser contornadas, regularizadas e saneadas, em prol do interesse público convergente” (STF - Agravo de Instrumento de Decisão que não admitiu Recurso Extraordinário n.º 807874/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, decisão monocrática, DJe 06.09.2010).
Apesar de os tipos penais dos artigos 4°, “caput”, e 6°, ambos da Lei n.º 7.492/1986, objetivarem a reprimenda de condutas distintas, a gestão fraudulenta possui uma fórmula linguística mais ampla, abarcando, por vezes, conduta que se insere no artigo 6º, condensando tais bens jurídicos numa cláusula de fechamento (STJ, Habeas Corpus nº 351.960-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, v.u., DJe de 26.06.2017). Desse modo, pelo princípio da subsidiariedade, pode haver a punição apenas a título de gestão fraudulenta, uma vez ser este o delito mais gravemente apenado na lei dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, contudo, como se afirmou precedentemente, esta situação só será possível de ser mensurada após a instrução probatória, por ocasião da prolação da sentença.
A objetividade jurídica do artigo 10 da Lei n.º 7.492/1986 é a garantia da solvência das instituições financeiras e a credibilidade dos agentes do sistema, a veracidade das informações que devem permear os negócios travados no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, e, neste específico tipo, objetiva-se a proteção dos investidores e dos credores das instituições financeiras, as quais devem conferir transparência às demonstrações contábeis de forma a ter-se ciência de sua situação financeira. Além disso, a própria fé pública dos demonstrativos contábeis das instituições financeiras. Tal qual se dá em relação à possibilidade de consunção entre o artigo 6º e o artigo 4º, “caput”, da Lei n.º 7.492/1986, deverá, de igual modo, ser procedido a referido exame no que tange ao artigo 10 por ocasião da sentença considerando todo o acervo probatório que venha a ser coligido ao longo da instrução processual.
Considerando-se a distinção da objetividade jurídica de cada um dos delitos irrogados na exordial incoativa, a sentença que venha a ser proferida deverá se voltar também à perquirição do elemento subjetivo dos tipos a fim de verificar a pertinência, ou não, da imputação, bem como se se poderia considerar a consunção entre eles, não sendo a atual fase processual em que se encontra o feito o momento para tal proceder.
Não se pode entrever na fase do recebimento da denúncia a possibilidade de se discorrer sobre o dolo dos agentes, matéria que demanda ultrapassar a fase da instrução probatória, pois tal comprovação é inerente ao desenvolvimento processual, sendo, portanto, mais um reforço a validar a coexistência nesta fase da imputação dos delitos tipificados nos artigos 4º, “caput”, 6º e 10, todos da Lei n.º 7.492/1986.
A fase processual em que se encontra o feito que ensejou a interposição do presente Habeas Corpus não permite impedir que a acusação possa produzir provas que lastreiem os argumentos já descritos na denúncia e que se basearam no procedimento administrativo levado a efeito pelas autoridades monetárias e no inquérito policial, com plena observância do contraditório, sendo assegurada ao paciente a ampla defesa.
A exordial acusatória descreve, para além da materialidade delitiva, a autoria do paciente (...) CALÓ em razão da condução da instituição financeira nas operações sobreditas. O Relatório do Banco Central, que subsidiou o oferecimento da denúncia, aponta que ele ocupa o cargo de Diretor Estatutário do BANCO MÁXIMA S.A, desde 22.11.2007, sendo detentor de 10% de suas ações e os demais elementos de provas inseridos na ação penal evidenciariam, em tese, que ele ostentaria um poder de mando na instituição bem maior do que apenas um sócio minoritário.
Tais atos teriam sido perpetrados de novembro de 2014 a março de 2016, sendo certo que todos eles, por si sós e isoladamente considerados, possuem o condão de resultar risco demasiado de prejuízo a terceiros (com ameaça à própria integridade financeira da instituição).
Está-se diante da imputação pelo Ministério Público Federal de tipos distintos (artigos 4º, “caput”, 6º e 10, todos da
Lei n.º 7.492/1986), com objetividades jurídicas distintas, com resultados pretendidos diversos e com elementos anímicos a serem posteriormente aferidos (em tese, ludibriar e enganar terceiros, causando risco à instituição financeira, aos credores e ao Sistema Financeiro Nacional).
Na esteira do entendimento jurisprudencial das Cortes Superiores, só seria possível o trancamento da ação penal se se divisasse de plano e sem necessidade de dilação probatória a completa ausência de prova de materialidade delitiva, de indícios de autoria e atipicidade da conduta ou ainda a presença de alguma causa configuradora da extinção da punibilidade, o que não se verifica na hipótese.
Ordem denegada.
(TRF 3ª Região, 11ª Turma, HCCrim - HABEAS CORPUS CRIMINAL - 5007150-19.2023.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal JOSE MARCOS LUNARDELLI, julgado em 21/09/2023, Intimação via sistema DATA: 25/09/2023)